A biopolítica e a casta mercadora

Com o abandono da esfera política tradicional as tribos da direita e da esquerda criaram um perigoso vácuo de poder social e normativo. Claro que a natureza não aceita vazios e algo tratou de se infiltrar nos buracos que o poder tradicional abandonou. Os mercadores. Esta casta incentivou o abandono do Estado e promoveu o seu código de valores muito específico. Em vez de honra passámos a ter uma mentalidade “negocial e de resolução de conflitos”. Em vez de integração a todos os níveis na vida da polis passámos a ter pequenos grupos profissionais regidos por “profissionalismo” (termo nebuloso obedecendo a critérios definidos pelos próprios técnicos). Em vez de poder e responsabilidade pessoal passámos a ter uma massa amorfa governada por burocracias cada vez mais opressivas, que não assumem a sua natureza reguladora. Em vez de existir a possibilidade de realização dentro da pólis enquanto seres sociais e políticos passámos a ser encorajados a recorrer à “mindfulness”. Há que reconhecer o sucesso de uma casta que começou por ser ostracizada e colocada à margem das relações tradicionais de honra, que caracterizam qualquer corpo político saudável. Demorou 500 anos mas os mercadores não só aboliram todos os estigmas associados à sua actividade como substituíram totalmente a escala de valores por outra que não só lhes trás vantagens como os coloca numa posição proeminência. É neste quadro que surge a obsessão com a quantificação de tudo e todos – e como consequência, a atribuição de um valor numérico a cada ser humano. De facto, a pirâmide social nunca foi tão precisa como no mundo moderno, a possibilidade de atribuir um valor específico a cada pessoa torna clara a posição de cada ser humano na cadeia alimentar. Todos os dias nos é dito que somos mais livres, mas parece que afinal todos os dias acordamos mais presos às nossas circunstâncias materiais.

“si è morto il Doge, no la Signoria” – “O doge está morto, mas a Signoria está viva” – Ditado Veneziano

“si è morto il Doge, no la Signoria” – “O doge está morto, mas a Signoria está viva” – Ditado Veneziano

Olhando para os novos valores e comparando-os aos antigos torna-se mais fácil perceber o alcance da transformação que teve lugar. A noção tradicional de honra assenta sobre o valor individual da palavra do individuo, um compromisso que envolve a própria essência do ser, algo a que nos vinculamos de livre vontade – sabendo que não será necessariamente o caminho mais fácil. Isto era algo nocivo a uma casta, os mercadores, cujo poder assenta na não validade da palavra. Tudo é negociável e para qualquer potencial conflito existe sempre uma solução negociada que evita tensões. Traduzindo: não existe noção de certo e errado, bom e mau ou linhas intransponíveis, esses conceitos foram demonizados e são tratados como visões “maniqueístas” ultrapassadas. Existem acordos, celebrados por tempo definido, que dividem os espólios consoante a força ou fraqueza de cada uma das partes. A quebra do que é acordado é um dado adquirido nestas negociações porque pela natureza do mundo os equilíbrios de força entre as várias partes tendem a oscilar e, inevitavelmente, na ausência de homens e mulheres de honra as situações degeneram numa supremacia do mais forte. A moral mercadora é uma guerra eterna de todos contra todos em que ninguém pode acreditar em nada, a única coisa que conta é o crescimento do poder aquisitivo, por muita devastação pessoal e social que isso possa trazer.

“Não deves honrar mais os Homens que a Verdade” – Platão

“Não deves honrar mais os Homens que a Verdade” – Platão

Como Aristóteles afirmou o Homem é um animal político. Está-lhe na sua natureza querer ter um voto na forma como a sua comunidade política é gerida (seja através dos mecanismos de participação democrática massificada seja através de outros modelos). Numa visão holística isto traduz-se pela harmonização das várias componentes da vida do Homem. A sua visão do mundo é coerente com a sua forma de estar na sua vida pessoal que por sua vez é coerente com a sua visão política da comunidade – gerando um ciclo positivo de reforço de ideias e emoções. Para o mercador isto era algo intolerável. Pois colocava entraves sérios à mercantilização de todas as esferas da vida e acima de tudo à quantificação do indivíduo em si mesmo. Tinha que desaparecer. Usando as forças da tecnologia o mercador forçou toda uma civilização a reinventar-se de acordo com os novos valores. A pólis foi fracturada para nunca mais ser unida. Os cidadãos passavam agora a agrupar-se não por vivências e ideias quanto ao campo político, mas pela sua actividade comercial. É preciso entender a malícia com que isto foi feito. O ser humano foi despido de tudo o que era, foi-lhe sonegada uma pertença a uma comunidade física a favor de uma alocação a uma área de produção geográfica (fábrica, escritório… pois tem que ser “móvel e adaptável”). Foi-lhe negada a pertença a uma comunidade de ideias sendo o espectro político agora dividido entre duas tribos de saltimbancos que se iriam confrontar de forma teatral sem poderem afectar verdadeiramente o rumo das coisas. Foi-lhe tirado tudo o que preenchia a sua vida até só sobrar um factor: o seu valor produtivo. O seu trabalho e a sua vida formavam agora um todo indissociável onde se não se sabe onde o primeiro acaba e a segunda começa. A Pólis deixou de ser uma unidade para passar a ser uma federação de pequenos reinos bárbaros regidos por “códigos profissionais”, cada um cuidando apenas dos seus interesses específicos – selando assim o seu destino colectivo: a irrelevância face ao poder esmagador da casta organizadora do trabalho e finanças, os mercadores.

“Dehumanization, although a concrete historical fact, is not a given destiny but the result of an unjust order that engenders violence in the oppressors, which in turn dehumanizes the oppressed” - Paulo Freire

“Dehumanization, although a concrete historical fact, is not a given destiny but the result of an unjust order that engenders violence in the oppressors, which in turn dehumanizes the oppressed” – Paulo Freire

Conseguindo destruir tudo o que ancorava o Homem à vida cabia agora à casta vitoriosa criar novas formas de organização da vida. Mas deparava-se com um problema. Para arregimentar as pessoas de forma coerciva precisava de recorrer a modelos do passado – os mesmos que se tinham empenhado em destruir por representarem obstáculos ao seu aumento de poder e capital. Era um dilema. A solução encontrada foi engenhosa, após terem removido as ideias do debate político recriaram organizações de gestão da vida humana, viradas exclusivamente para o lado quantitativo e, de forma mais substancial, inteiramente desprovidas de carisma. Afinal de contas o modelo do mercador não assenta sobre carisma, a posse é a lei, e a possibilidade de existirem forças além da posse era uma ameaça desestabilizadora que simplesmente não iriam tolerar. É o nascimento da organização burocrática. Na ausência de honra criaram-se leis minuciosas e incompreensíveis para a maioria que está sujeita aos seus ditames. Na ausência de pertença criou-se uma esfera de trabalho que tudo ocupa e dita o posicionamento dos indivíduos. Na ausência de carisma cria-se obediência ao procedimento, à regra, ao detentor do cargo. Colocando as coisas em termos platónicos, a essência do ser humano fica submetida às formas. É neste espírito que nasce uma consciência cidadã falsificada e um espírito de participação cívico fictício – o mundo das manifestações sem perturbações ao trânsito e turismo, das greves sem quebra de produção, da petição online, etc.

The Revolution is for Display Purposes OnlyEste curto relato condensa séculos de preparação por parte da casta mercadora para assumir as rédeas dos destinos humanos mas deixa-nos com uma questão por responder. Foi um projecto de poder bem-sucedido? Atingiu o que se propôs. Desvitalizou o ser humano e reduziu-o a uma ferramenta. Isto é inegável. Mas então porque somos assaltados por este ambiente de crise permanente? Obviamente parte da resposta está no sistema comercial e financeiro que não só dita o destino da economia como os próprios “valores” da sociedade mercantilizada. Mas só isso não explica o medo que ainda se sente na casta suprema. Ao fim de muita experimentação social o mercador descobriu algo que o mantém acordado à noite. Algo que tenta esconder ao máximo das pessoas normais. Descobriu que o espírito humano pode ser reprimido e redirecionado, mas que essa manipulação eventualmente vai começar a fazer crescer uma tensão irresolúvel no seio de cada pessoa. Um anseio por algo mais. A sensação de vazio que não é apagada pela multiplicação frenética de actividade para ocupar os dias. A certeza absoluta no íntimo de cada um de nós que “algo está podre no reino da Dinamarca”. Tendo removido tudo o que nos tornava humanos e podia dar soluções a esta tensão acumulada o mercador está entre a espada e a parede. Se permite que a tensão se manifeste o poder da casta cai, mas se reprime ainda mais corre o risco que esta se manifeste de forma imprevisível. Não tendo nada a propor às pessoas (afinal elas já são tudo o que o mercador quis que fosse: números, objectos, ferramentas, substituíveis…) resta-lhe recorrer à biomoralidade. Usando o corpo como único ponto de referência quer usá-lo para substituir tudo o que foi destruído. O não comer de forma saudável deixa de ser considerado como um apetite sensual para ser visto como uma má escolha, que por sua vez vai criar um “mau” cidadão. A pressão no trabalho atinge níveis insuportáveis, mas a solução nunca está em alterar o modelo definido pela casta mercantil, mas sim em fazer os trabalhadores acreditarem que a culpa é sua. Não estão preparados, não sabem gerir o stress, não são proactivos, etc. Há problemas sociais graves por resolver, mas mais uma vez a culpa é do cidadão, que, segundo o mercador, sofre de estupidez crónica e não entende que esses problemas não se abordam com políticas estruturais, mas sim com apelos a uma responsabilidade individual (“se todos fizessem o que deviam não existiriam problemas”) – intencionalmente ignorando a impotência do cidadão em causar impacto seja no que for.

“When nations grow old the Arts grow cold And commerce settles on every tree” – William Blake

“When nations grow old the Arts grow cold
And commerce settles on every tree” – William Blake

O insucesso da tácita está mais que patente no aumento das tensões sociais e no histerismo cada vez mais ofensivo dos pregadores da biomoralidade (devidamente sancionada pela ciência para manter as unidades humanas produtivas mas politicamente inertes). Sucedem-se as modas das dietas, das meditações, do desporto compulsivo, dos alimentos orgânicos… e nada parece apaziguar as pessoas. Parece que esta competição levada ao extremo físico não consegue oferecer alternativas credíveis para sustentar uma sociedade. E, no entanto, a propaganda prossegue. Enquanto o ser humano não for restaurado a toda a sua dignidade o mal-estar continuará. Enquanto a pólis não voltar ao seu papel enquanto quadro de referência integradora nada poderá ser resolvido. O mercador, apesar de toda a sua astúcia, não conseguiu dissolver a essência humana.

"When there is no enemy within, the enemies outside cannot hurt you." - Winston Churchill

“When there is no enemy within, the enemies outside cannot hurt you.” – Winston Churchill

A casta dos mercadores aposta na continuação do isolamento individual para manter o seu poder, mas esquece-se que só está sozinho nesta noite escura quem não souber onde procurar ajuda. Todos temos a capacidade de nos voltarmos a ligar ao Real (por oposição ao mundo plástico das formas mercantis). É só querermos dar o primeiro passo.

NémesisAtravessamos a escuridão por estradas sombrias

A nossa vigília nunca terá fim

As ideias que mantemos vivas são imortais

O único verdadeiro lado que existe somos nós.

A vigília de Némesis

A humanidade tem uma tendência para criar padrões de comportamento. Isto é algo positivo. Foi o que nos permitiu formar o que chamamos “civilização”. Pouco a pouco fomos repetindo padrões que sabíamos que iriam produzir um pequeno efeito positivo nas nossas vidas. Estes padrões foram por sua vez revestidos por uma camada mitológica que nas civilizações do mediterrâneo tendiam para formar uma narrativa de ordem versus caos. Permitam-me um exemplo: Set ameaçava a ordem do Egipto até que os esforços combinados de uma trindade conseguiram restabelecer a ordem das coisas – é o que relata uma versão do mito do assassinato de Osíris às mãos de Set. Após matar Osíris, Set esquarteja o seu corpo espalhando as partes pelo Egipto para nunca poder ser recomposto, Isis, consorte de Osíris, parte na demanda de voltar a unir as partes e é bem sucedida conseguindo ressuscitá-lo; da sua união nasce Hórus que mais tarde, ao atingir a idade adulta, vem a repor a ordem no Egipto depondo o seu tio Set, ainda que perdendo um olho no combate. Este tipo de relato serve para exemplificar a criação de um padrão de restauração. De ordem. Mas, abandonando o Egipto faraónico, no presente estamos presos no padrão inverso, um ciclo negativo de criação de caos que não sabemos inverter.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

Portugal está entregue ao caos mais profundo que é possível existir, aquele que tolda a mente dos Homens ao ponto de nem o reconhecerem. O caos confundiu as pessoas ao ponto de entorpecer o seu discernimento e fez grande parte de nós esquecer-se de quem somos e, talvez ainda mais importante, quem queremos ser. Há muito que a Irmandade de Némesis alerta para o facto de a política em Portugal já não ser de facto política, mas apenas a mera gestão da sobrevivência das elites. As tribos da direita e da esquerda “digladiam-se” num espetáculo artificial que visa apenas criar diferenças para o consumidor… perdão… o eleitor poder fingir que tem uma escolha. O caos oferece sempre uma miríade de opções na tentativa de esconder que todas elas são igualmente estéreis. É cansativo ver como os senhores deste aparelho decrépito não retiraram lição nenhuma da crescente fragmentação partidária e da indiferença de um número crescente de eleitores. As palavras de ordem repetem-se, as críticas são as mesmas, as peças de teatro parecem ter sido escritas pelo mesmo autor. A única coisa que muda são os nomes que estão de cada lado. Até para o espectador mais desatento isto começa a provocar uma estranha sensação de déjà vu.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

No essencial o regime está esgotado. E continua esgotado porque o voto é apenas uma ferramenta formal que escolhe candidatos pré-seleccionados e pré-aprovados por quem detém de facto as rédeas deste país nas suas mãos. O cidadão comum continua a confundir o “Estado” com o poder real. Na realidade o Estado tem sido esvaziado progressivamente de poder efectivo. Entre as parcerias que mantém com o sector privado, as cedências de competências indevidas ao poder local e o efeito de erosão da soberania, que são as constantes exigências orçamentais e políticas da União Europeia, sobrou pouco sobre o qual um líder nacional possa de facto ter um impacto significativo. Não que o cidadão alguma vez vá ouvir estas verdades fora deste espaço. Irão explicar-lhe ponto a ponto como estamos a caminhar para um futuro melhor apesar de todos os sinais o negarem. O poder e saúde da nação, tal como Osíris, foram retalhados por aqueles que apesar de possuírem uma pretensão ilegítima ao poder conseguiram apossar-se dos mecanismos de controlo. Não sendo os detentores de direito todos os seus passos e acções espalham mais confusão e miséria, porque em última análise nunca quiseram o poder para algo que não fosse apenas a sua gratificação pessoal.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

As parcerias com o sector privado serão explicadas como essenciais, apesar dos maus exemplos do passado, pois o Estado não tem o direito de oprimir a economia de “mercado” (falta explicar em que economia de mercado existem rendas garantidas) nem possui recursos para chegar a todo o lado – convenientemente ninguém explica como é que uma organização privada que não tem as economias de escala do Estado e ainda precisa de assegurar um lucro pode alguma vez fornecer um serviço melhor ou mais barato. A elevação do poder local a algo “central para a democracia” será vendido como uma devolução de poder ao cidadão que poderá, conforme as suas necessidades locais definir a alocação de recursos – tapando a sórdida realidade que esta realocação de poderes e fundos afecta essencialmente as máquinas partidárias locais, a arraia miúda e média dos partidos, que são vitais para escolher as lideranças partidárias nacionais (e mantê-las). As exigências europeias, cada vez mais desajustadas da realidade nacional serão promovidas como essenciais para garantir acesso aos mercados, um lugar no palco internacional, credibilidade diplomática, eficácia económica… – tudo o que possa ajudar a centrar a discussão política nacional em detalhes tecnocráticos em vez de questões de fundo sobre dependência e soberania. Sai a facção A, entra a facção B. Sai a facção B, entra a facção C. E assim sucessivamente… todos repetindo ipsis verbis estes pontos. Porque as suas raízes vão todas beber ao mesmo rio poluído que é o regime actual. O caos perpetua-se na ausência de um principio ordenador originador de justiça.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

Reconhecendo este estado de coisas a Irmandade Némesis empenha-se diariamente em informar os cidadãos (membros ou não-membros) que começam a levantar o véu a esta realidade em decomposição. E em aos poucos criar um caminho de restabelecimento de ordem. É um trabalho ingrato porque as elites, mais que entranhadas, estão enquistadas na realidade social portuguesa. Dominam a produção intelectual, têm fundos disponíveis para comprar e vender a grande maioria dos cidadãos, estão representadas em todos os órgãos com poder neste país. São um polvo que nos sufoca enquanto nação. Asfixiam todos os que não se libertarem da sua dominação. Somos cavaleiros que percorrem estradas sombrias, tentando restabelecer a verdadeira ordem das coisas, sentimos o chamamento do dever e de ideais mais elevados que o mero conforto ou ganho pessoal. Mantemos viva a verdade: que as elites não são as detentoras legitimas do nosso país. Apenas se apropriaram dele de forma violenta conseguindo quase apagar a hipótese de um outro Portugal ser possível e de outra ordem de valores para a vida pública estar disponível para quem souber reconhecer a teia de mentiras que o rodeia, e aceitar o manto de responsabilidade que vem com esse conhecimento. Metaforicamente vivemos no reinado de Set mas mantemos viva a memória de Osíris e guardamos o trono de Hórus até ele o reclamar. Sustentamos o princípio da Justiça num tempo escuro.

NémesisA Irmandade de Némesis mantém a sua vigília e acolhe todos nas suas fileiras!

O que estava realmente em jogo

Enquanto os estilhaços da decisão do Reino Unido sair da União Europeia ainda estão a cair começa a ficar mais claro para todos o que estava realmente em jogo. O controlo da maior praça financeira Europeia, a city de Londres. O governo das ilhas quer atrasar ao máximo as possíveis negociações sobre as condições de saída enquanto que o governo alemão (principal beneficiário de uma fragmentação do sector financeiro londrino) quer as negociações para ontem. Joga-se o futuro do Reino Unido como agente financeiro de primeira linha no mundo globalizado. Muitos britânicos entendem pela primeira vez que as empresas não possuem lealdades nacionais nem preocupações com o bem-estar de ninguém, apenas querem aproveitar a fraqueza do país para arrancar coercivamente melhores condições para continuarem a fazer o que já fazem – adivinha-se um anúncio de cortes de impostos empresariais para apaziguar os deuses do mercado. Dependendo da dureza do jogo de Berlim, o Reino Unido pode caminhar ou para um estatuto internacional reduzido ou, em caso de perda de uma fatia muito significativa do seu peso financeiro, uma intensa reindustrialização baseada em modelos económicos pré-monetaristas.

"Are you not ashamed of caring so much for the making of money and for fame and prestige, when you neither think nor care about wisdom and truth and the improvement of your soul?" - Sócrates

“Are you not ashamed of caring so much for the making of money and for fame and prestige, when you neither think nor care about wisdom and truth and the improvement of your soul?” – Sócrates

Este processo envolve uma história longa e repleta de ironia. O Reino Unido foi o primeiro país Europeu a entender e a reagir à globalização financeira. Com a subida de Thatcher ao poder os Torys embarcam num plano para mudar a face do mais antigo bastião industrial do Ocidente. O seu plano era centrar o país no sector financeiro e abandonar progressivamente a indústria tradicional – tendo plena consciência que isso implica abandonar grande parte do país real. O primeiro passo foi criar volume de capitalização bolsista em Londres e para isso lançaram uma onda de privatizações que reduziram o peso da industria nacionalizada no PIB de 9% para 2%. Isto teve vários efeitos que se reforçaram mutuamente. Além do aumento súbito da capitalização da praça de Londres deu-se uma quebra substancial do poder dos sindicatos e deu-se um poderoso golpe ao partido trabalhista – que quando acabou o seu longo exílio pouco mais fez que dar uma cara mais simpática às politicas que já estavam a ser seguidas. A esta injecção de capital no Estado há a somar os ganhos do petróleo do mar do Norte que criaram uma almofada financeira impressionante. Para que foi usado este fundo de maneio? Para reduzir drasticamente os impostos nos escalões mais elevados (de 80% para 40%). Esta redução atingiu dois objectivos: em primeiro lugar criou rendimento disponível na classe média-alta e alta para investimentos financeiros, e em segundo lugar tornou as posições bem remuneradas na city ainda mais atractivas. Em 1986 é dada a machadada final com a liberalização do sector financeiro que atrai cada vez mais investidores financeiros estrangeiros a Londres. Está lançado o caminho para três décadas de continuidade de endeusamento do sector financeiro e abandono da economia real – que enquanto este processo decorreu sofreu um desemprego galopante, fechos das indústrias tradicionais e a formação de guetos nos antigos grandes centros industriais (que agora se assemelham a cemitérios de um passado distante).

"Eu encontrei um viajante de uma terra antiga Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso Erguem-se no deserto. Perto delas na areia, Meio afundada, jaz um rosto partido, cuja expressão E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida, A mão que os zombava e o coração que os alimentava. E no pedestal estas palavras aparecem: "Meu nome é Ozymandias, rei dos reis: Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!" Nada resta: junto à decadência Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância." - Percy Shelley

“Eu encontrei um viajante de uma terra antiga
Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso
Erguem-se no deserto. Perto delas na areia,
Meio afundada, jaz um rosto partido, cuja expressão
E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando
Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida,
A mão que os zombava e o coração que os alimentava.
E no pedestal estas palavras aparecem:
“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!”
Nada resta: junto à decadência
Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas
As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.” – Percy Shelley

Enquanto a Europa tentava manter a sua indústria durante os anos 80 o Reino Unido estava a criar o maior polo financeiro do continente (mesmo que isso condenasse grande parte dos britânicos a um nível de vida cada vez pior). Com o apogeu da doutrina dos mercados “livres” no início dos anos 90 o resto da Europa já estava na mesma página: todos os países abandonavam os seus sectores tradicionais à procura de ganhos de produtividade através de economias de serviços e ganhos financeiros – com a excepção da Alemanha, que se manteve firme na sua defesa de um poderio industrial autónomo, tornando-se a fábrica da Europa (aliás financiou durante mais de uma década a destruição gradual da industria nos outros parceiros Europeus). Mas era demasiado tarde. A dianteira de Londres (facilitada por partilharem uma língua e cultura com os EUA) era demasiado grande para que mesmo Frankfurt pudesse chegar-lhe aos calcanhares. Até agora. Chegou o momento Alemão. Juntar uma liderança financeira a uma liderança industrial irá torna-la a incontestável senhora da União, perante a qual todos os outros nada mais são que súbditos que devem ser relembrados da sua posição nesta nova ordem politica continental.  Por terras lusas treme-se diante deste novo gigante não havendo qualquer coragem das elites locais. Como é sua tradição apenas querem que seja assegurado o seu lugar ao sol seja quem for que mande nas coisas. Podem estar prestes a ter uma surpresa. Pela primeira vez a sua conivência com as elites exteriores poderá não lhes dar frutos. Uma potência hegemónica não reconhece iguais, não tem interesse em elites locais saloias e muito menos tem vantagem em conferir-lhes qualquer poder real. Ao recusarem partilhar o poder as elites locais selaram o seu destino, arrastando todo o país consigo.

NémesisSiga o exemplo da Irmandade de Némesis: Não se resigne a ser uma vítima das elites!

E ficaram 27

Apesar das pressões de última hora que foram colocadas sobre os cidadãos do Reino Unido o resultado do referendo sobre a sua permanência na União Europeia foi um “não”. As elites locais mediram muito mal o grau de agastamento das populações, daqueles que há pelo menos duas décadas têm visto as suas vidas piorar de ano para ano. A segurança laboral foi-se, os salários reais fora do sector financeiro encontram-se estagnados ou em baixa, o acesso à habitação nas grandes áreas metropolitanas é quase impossível, a educação superior tornou-se um luxo incomportável para muitas famílias e o sentimento de estarem abandonados dentro da sua própria comunidade tornou-se insuportável para muitos. E tudo isto pesou no voto. Pode-se argumentar que muitas destas questões derivam de como as autoridades nacionais e locais lidaram com as situações e que não reflectem qualquer má fé por parte da União Europeia. E em parte teriam razão. Mas apenas em parte. A lógica de especialização que está subjacente à globalização e em especial à organização económica da União Europeia quando não precipitou grande parte destes problemas pelo menos acelerou-os. Não se pode dentro de uma mesma unidade nacional manter duas realidades sociais paralelas em oposição – a das elites em que tudo é reluzente, há luxo, cuidados de saúde de primeira qualidade e acesso a tudo o que se possa desejar e a da maioria que é cada vez mais esquálida, decadente e excluída. A Europa tem sido surda aos dois mundos que estava a criar em cada país e pagou um preço por isso.

"Governments, if they endure, always tend increasingly toward aristocratic forms. No government in history has been known to evade this pattern. And as the aristocracy develops, government tends more and more to act exclusively in the interests of the ruling class -- whether that class be hereditary royalty, oligarchs of financial empires, or entrenched bureaucracy" - Frank Herbert

“Governments, if they endure, always tend increasingly toward aristocratic forms. No government in history has been known to evade this pattern. And as the aristocracy develops, government tends more and more to act exclusively in the interests of the ruling class — whether that class be hereditary royalty, oligarchs of financial empires, or entrenched bureaucracy” – Frank Herbert

E agora? Agora vamos caminhar para um caminho de cada vez maior tensão entre os dois polos de poder restantes no Continente. Uma França enfraquecida por imposições de um modelo económico que é estranho ao seu tecido social contra uma Alemanha hegemónica que quer secundarizar toda a Europa Ocidental e centrar-se nos seus protectorados orientais. Não há competição. Estamos perante o dilema para o qual a Irmandade de Némesis tem vindo a avisar há já algum tempo: ou teremos uma GrossDeutschland de realpolitik e esmagamento de toda a periferia Europeia ou iremos assistir ao colapso do todo o projecto Europeu à medida que mais membros saírem de livre vontade ou forçados pelas circunstâncias.

"I am not a man who believes that we Germans bled and conquered thirty years ago...in order to be pushed to one side when great international decisions call to be made. If that were to happen, the place of Germany as a world power would be gone for ever, and I am not prepared to let that happen. It is my duty and privilege to employ to this end without hesitation the most appropriate and, if need be, the sharper methods. " - Kaiser Guilherme II

“I am not a man who believes that we Germans bled and conquered thirty years ago…in order to be pushed to one side when great international decisions call to be made. If that were to happen, the place of Germany as a world power would be gone for ever, and I am not prepared to let that happen. It is my duty and privilege to employ to this end without hesitation the most appropriate and, if need be, the sharper methods. ” – Kaiser Guilherme II

É preciso ter noção que o jogo de poder a nível continental mudou a vários níveis. Em primeiro lugar irão cada vez mais aparecer disputas regionais que usarão a desculpa da pertença à UE como arma nas suas lutas independentistas (veja-se a Escócia, Catalunha, País Basco…) – isto vai ameaçar directamente a integridade territorial de muitos estados Europeus (e parte da culpa está também numa Europa “das regiões” que sempre incentivou a regionalização e maior poder local). Em segundo lugar, sendo a Alemanha o poder que rege todo o projecto é inevitável uma deriva oriental – para o que a Alemanha sempre considerou a sua área natural de influência e privilégio, deixando o Ocidente abandonado na posição de pedinte na corte Imperial Prussiana. E em terceiro lugar é preciso notar que foi aberto um precedente. Mais países irão, mais tarde ou mais cedo, ameaçar seguir o exemplo Britânico na expectativa de secessão ou simplesmente para conseguir acordos muito mais vantajosos – A Grécia irá usar o fantasma da desagregação para tentar sacudir o colonialismo financeiro, a Espanha será tentada a fazer ameaças nesse sentido se a União não der mostras claras de não reconhecer possíveis repúblicas independentistas, França e Itália irão tentar usar isto para relocalizar o poder mais a Ocidente e reduzir o peso das suas colossais dívidas. Quanto mais ameaças de saída existirem (quer se concretizem ou não) mais frágil todo o edifício se torna.

"As pessoas sabem o que querem porque sabem o que os outros querem" - Theodor Adorno

“As pessoas sabem o que querem porque sabem o que os outros querem” – Theodor Adorno

E Portugal como fica? Fica na mesma. Convém notar que Portugal é uma nação muito especial no sentido das suas elites não se reconhecerem nela, nem aliarem os seus interesses a um projecto comum. Assim vivemos num mundo de senhores mais ou menos feudais que só querem mesmo manter a sua coutada sem serem incomodados – politicamente isto traduz-se numa ausência total de desígnio nacional. O único projecto que existe é a Europa. Se esta começar a vacilar vai existir pânico e medo entre as lideranças políticas, económicas e sociais. Se a isso somarmos uma possível intransigência crescente por parte da Alemanha isto pode dar origem a um fenómeno de grande dissonância entre elites e subjugados, com as primeiras a defenderem o declínio nacional como preço de pertença à comunidade e os segundos a defenderem tudo menos isso à medida que se afogam num mar de dificuldades cada vez maior.

Némesis

Para quem vir o mesmo que nós, fica o convite da Irmandade de Némesis a não ficar quieto: não se resigne a ser um fantoche nas mãos de outros.

Colonialismo progressista

Segundo o representante do FMI alocado a Portugal, os desempregados devem ser ouvidos nas negociações que ocorrerem sobre os aumentos salariais. Atente-se a fina ironia do argumento. Uma organização não democrática, que por admissão própria não responde perante nenhum eleitorado, aconselha-nos sobre o nosso défice democrático nas questões laborais. Mais grave é tudo isto se passar depois das medidas aplicadas sob a pressão deste corpo tecnocrático terem provado ser venenosas para o crescimento económico e para a paz social. A cereja no topo do bolo é mesmo a admissão que a Europa ficou em tão mau estado depois de anos de repressão fiscal e política que precisa de um plano de investimento – afinal parece que a simples aplicação de medidas de redução do peso dos salários e desregulamentação dos mercados não atai automaticamente o investimento necessário. Pelo contrário, as medidas coercivas propostas e/ou patrocinadas por este organismo levaram à fragmentação da ordem política dos países “sob intervenção”: em Portugal gerou governos de coligação cada vez mais vastos devido à insatisfação popular como o que lhes está a ser apresentado. Em Espanha levou a um impasse que não parece estar próximo de ser resolvido, com consequências ainda imprevisíveis para a unidade do país. A Grécia foi essencialmente reduzida a um estatuto colonial levando a uma situação de um autêntico governo sombra tecnocrático que só precisa dos políticos locais para dar a cara pelas medidas impostas. A França tem sido poupada a humilhações directas, por enquanto, mas está também sob intensa pressão da tecnocracia financeira para reformular todo o seu quadro social segundo as linhas de um liberalismo económico de século XIX.

"Power without legitimacy tempts tests of strength; legitimacy without power tepmts empty posturing." - Henry Kissinger

“Power without legitimacy tempts tests of strength; legitimacy without power tepmts empty posturing.” – Henry Kissinger

Será isto o reconhecimento que foram cometidos erros e que vamos mudar de rumo? Dificilmente. Até porque a organização não tem incentivos em reconhecer a sua própria falibilidade – isto se formos simpáticos, e assumirmos que o que aconteceu foi cegueira derivada de uma excessiva confiança em modelos errados e não acções deliberadas com outros objectivos. Assim sendo esta súbita preocupação para com os desempregados serve para quê? Serve para bloquear qualquer subida continuada dos salários ameaçando que qualquer subida salarial pode impactar a criação de novos empregos. Em suma, criar uma pequena guerra intestina dentro do diálogo social, evitando que corpos exteriores ao país tenham que sujar as mãos para nos manter economicamente mortiços e politicamente submissos. Dividir para reinar.

"Weak emperors mean strong viceroys" - Isaac Asimov

“Weak emperors mean strong viceroys” – Isaac Asimov

Sob a capa de uma maior integração para os excluídos (desempregados) está-se a exportar a discórdia social para Portugal. A nossa soberania está a ficar tão erodida que até os modelos de resolução de tensões sociais nos estão a ser impostos de fora por quem não tem moral para falar sobre tais temas – com o apoio entusiástico das elites, que não perderão a oportunidade se mostrarem preocupadas com os “coitados” quando na realidade apenas querem mais uma ferramenta para bloquear o poder político nacional.

Referendos, mártires e monstros

A Europa acordou algo chocada – dentro do que é possível para uma opinião pública massificada, estupidificada e brutalizada – com o assassinato de uma política britânica, nada mais que um membro do Parlamento Inglês. O retrato que nos está a ser apresentado não podia ser mais dado a simplificações. A vítima era uma defensora dos direitos humanos, pró-emigração, politicamente reformista e fazia campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia. O seu assassino é membro de organizações racistas e violentas, condenáveis sobre todos os pontos de vista. Num referendo que se parecia inclinar cada vez para o isolacionismo britânico as coisas podem estar prestes a mudar.

UK e UEMas recuemos um pouco. Este referendo tem uma longa história que convém ser explicada. O Reino Unido sempre se viu com uma nação (e anteriormente Império) extra-europeu. Era uma potência que durante todo o seu apogeu só teve uma única política para o continente: impedir a formação de uma grande potência continental – lutou contra a Espanha e a França para tentar impedir a união dinástica das duas coroas e reforçar o seu poder comercial na guerra de sucessão espanhola (1702-1714), lutou com a França, Holanda e Áustria contra a Espanha na guerra da quadrupla aliança (1718-1720) para impedir o crescimento territorial espanhol em Itália , combateu com a Prússia e Portugal contra a Espanha e a França na guerra dos sete anos (1756-1763) para obter ganhos coloniais e enfraquecimento dos impérios coloniais rivais, criou uma coligação poderes reaccionários (Áustria, Portugal, Prússia, Espanha…) para combater a França, (quer enquanto República quer enquanto Império) nas guerras revolucionárias e napoleónicas (1793-1815), incentivou e armou os nacionalistas gregos para separar a província de um Império Otomano decadente (1820-1830), interferiu na política interna dos reinos de Portugal (1828-1834) e Espanha (primeira guerra carlista de 1833-1840) ao apoiar as facções liberais de forma a “clonar” o seu próprio regime parlamentar e forçar relações de dívida perene das duas coroas perante a banca inglesa. A lista é interminável. Não há qualquer indicio de uma ideologia que guie tal variedade de opiniões e acções e isto é explicado por um pragmatismo brutal desprovido de crenças dedicado a assegurar apenas uma coisa:  uma Europa fragmentada.

Mesmo em tempos mais recentes (e mais pacíficos) temos que compreender que a sua entrada na Comunidade Europeia foi apenas para assegurar o seu lugar à mesa e tentar com que a evolução do colosso embrionário europeu fosse orientada para uma lógica de mercado livre e desregulamentado – o que revelou ser um enorme sucesso dado o que se passou nas 3 décadas seguintes. Nunca em momento algum houve um grande interesse por uma cultura comum com o resto da europa ocidental. O Reino Unido sempre se viu, e ainda vê, como uma excepção política e cultural. A sua pertença à comunidade foi usada como forma de salvar o poder financeiro da nação tendo transformado a city de Londres no segundo maior polo financeiro do mundo (depois de Nova York). Foi uma escolha deliberada dos governos conservadores do Reino Unido dar prioridade ao sector financeiro em detrimento da economia real. Os governos trabalhistas que se seguiram reforçaram essa escolha e abriram caminho para o desastre económico que aflige a nação, com níveis de pobreza jamais vistos. Mesmo assim o novo governo conservador manteve exactamente as mesmas escolhas, infligindo ao seu povo a mesma receita que as elites portuguesas adoptaram por cá: tornar o estado uma máquina de propagação da teoria de sobrevivência dos mais fortes e abandono total de qualquer responsabilidade social, económica ou política – a famosa austeridade que se dizia ser uma força de destruição criativa mas só deixou cinzas no seu rasto.

“The forces which are working out the great scheme of perfect happiness, taking no account of incidental suffering, exterminate such sections of mankind as stand in their way, with the same sternness that they exterminate beasts of prey and herds of useless ruminants.” - Herbert Spencer

“The forces which are working out the great scheme of perfect happiness, taking no account of incidental suffering, exterminate such sections of mankind as stand in their way, with the same sternness that they exterminate beasts of prey and herds of useless ruminants.” – Herbert Spencer

É neste contexto que surge um referendo sobre a União Europeia. Um país que já não é um Império e não sabe como lidar com uma nova realidade. Um povo que se sente completamente à margem de Bruxelas e das decisões que lá são tomadas. Uma economia refém de interesses financeiros internacionais de natureza especulativa. Um interior que se ressente profundamente de Londres que vê como um sorvedouro de dinheiro, cultura e poder. Neste ambiente a propaganda agita as multidões. Ecos imperais ainda se fazem ouvir em muitos que não querem aceitar o novo status quo. As tensões de classe, que pareciam ser coisa do passado, voltam a sentir-se e os ingleses percebem que as divisões socio-económicas só se podem agravar continuando tudo como está – daí o magnânimo desprezo que têm dado às expressões de desejo de continuidade na UE manifestadas por representantes da elite (personagens mediáticas, grandes executivos de firmas financeiras multinacionais, a maioria dos políticos mainstream, a crème de la crème do mundo académico exemplificada por Oxford e Cambridge…). Não é um fenómeno limitado a marginais, psicopatas e foras da lei. É uma reacção espontânea, fruto de um mal-estar profundo numa sociedade ocidental esgotada. É algo que pode acontecer noutro lado qualquer na Europa. E isso cria medo nas elites. Medo de perderem o controlo dos mecanismos que asseguram o seu poder. Medo que sejam reintroduzidas medidas de fiscalização popular de todo o edifício legal e económico que os mantém no topo da pirâmide. Medo que contas sejam ajustadas.

"As it turns out, we don't "all" have to pay our debts. Only some of us do." - David Graeber  ps: parabéns a quem souber "ler" a foto.

“As it turns out, we don’t “all” have to pay our debts. Only some of us do.” – David Graeber
ps: parabéns a quem souber “ler” a foto.

Mas agora tudo isso vai provavelmente ser varrido para debaixo do tapete. Este homicídio marca senão o fim do debate no Reino Unido (pode ser já demasiado tarde para inverter a tendência de secessão) pelo menos o fim do debate no resto da Europa. As posições a favor da continuação na União terão agora a bênção dos céus pelo sangue derramado pela mártir, qualquer questionamento das suas intenções e interesses será ignorado ou sofrerá acusações concordar com o autor do crime – uma espécie de crime por associação intelectual. A parte racional do eleitor vai ser desligada. Não porque ele escolha fazê-lo mas porque é essa a natureza da propaganda. Pega-se numa situação insustentável cheia de zonas cinzentas de incerteza e substitui-se por uma escolha moral a preto e branco. És dos bons ou dos maus? A escolha passa a ser simples e todos podemos voltar à nossa rotina de decadência lenta mas inexorável.

Os mega dadores

Nos últimos dias foi anunciado que o fundador do facebook, Mark Zuckerberg, “doou” grande parte da sua fortuna para fins “filantrópicos”. Os media, na sua habitual falta de atitude crítica face aos poderosos, louvam incessantemente este tipo de exemplos (por vezes por razões bastante transparentes de auto-interesse) como luzes que brilham no escuridão que ameaça envolver-nos. Apontam-nos estes casos como prova que as pessoas são intrinsecamente boas e que independentemente da forma como os oligarcas agem ou acumulam as suas fortunas são no fundo “tipos porreiros”, empenhados no bem-estar dos outros cidadãos que não tiveram as mesmas oportunidades. Este caso não é o primeiro do seu género (o mais famoso é caso da fundação Gates criada pelo fundador da Microsoft) nem descreve um fenómeno exclusivo de certos países, é uma tendência global. Antes que sejamos levados por esta falsa onda de boa vontade e aparente irmandade temos que começar a fazer o trabalho de desmontagem e análise crítica que nenhum meio de comunicação está interessado em fazer.

"The threat to men of great dignity, privilege and pretense is not from the radicals they revile; it is from accepting their own myth. Exposure to reality remains the nemesis of the great” - John Kenneth Galbraith

“The threat to men of great dignity, privilege and pretense is not from the radicals they revile; it is from accepting their own myth. Exposure to reality remains the nemesis of the great” – John Kenneth Galbraith

Em primeiro lugar nenhuma destas pessoas doou um cêntimo seja a quem for. Sim é verdade. Não houve doação a qualquer causa ou individuo. O que aconteceu foi que estes bilionários transferiram parte dos seus bens para entidades privadas que eles próprios fundaram e gerem. Com que objectivo o fizeram? Aqui a resposta tem vários níveis. Com o mal-estar crescente das populações face ao sistema político e económico que nos gere tornou-se urgente para o establishment relançar a discussão da legitimidade. Ou seja, há uma necessidade de demonstrar às pessoas que a relação de poder que existe entre oligarcas e cidadãos comuns não é apenas uma obscenidade derivada da acumulação ganhos (sejam legítimos ou não, conforme o caso) e de relações indevidas entre o poder político e o sector privado. Há que assegurar ao cidadão que há um fundo de justiça no meio disto tudo. E que apesar da maior parte das pessoas já não poder contar com uma carreira, com cuidados sociais básicos ou sequer poder confiar nos eleitos o sistema funciona (grande parte destes problemas derivam do esforço colossal que os mega dadores dedicam a evitar pagar impostos sobre os seus ganhos empresariais e a evitar a criação de condições laborais dignas) e que todas as desigualdades se equilibram de forma automática como uma espécie de equação matemática social. Nada fica mais equilibrado com estas “doações” que na realidade são apenas transferências internas dentro do vasto património empresarial e pessoal destes magnatas. A posse dos fundos permanece nas mesmas mãos e o destino a dar-lhes continua a ser uma decisão na qual ninguém tem qualquer voto.

"Um desequilíbrio entre os ricos e os pobres é o mais antigo e mais fatal problema de todas as Repúblicas" - Plutarco

“Um desequilíbrio entre os ricos e os pobres é o mais antigo e mais fatal problema de todas as Repúblicas” – Plutarco

Estas transferências de património além de visarem reconstruir uma credibilidade perdida têm também por objectivo satisfazer os egos colossais destas pessoas ao permitir que se imiscuam na vida social das nações como nunca antes havia sido tentado. Os caprichos e vontades de uma mão cheia de seres humanos são agora impostos ou vendidos como sendo benéficos para toda a humanidade. Isto sem nunca incorrer na sórdida acção de ter que consultar a tal humanidade sobre o que realmente pensa sobre os problemas que a afligem. Com a quantidade de fundos ao seu dispor estas fundações condicionam todas as outras organizações (de investigação, apoio social, educação, tecnologia, etc) ao criar um gigantesco polo de atracção financeira que ninguém pode ignorar. Não será de estranhar que todas as organizações que se associam a tais fundações (incluindo governos) acabam por ver o seu poder de decisão e autonomia destruídos. Quem tem o ouro faz as regras e neste caso os oligarcas têm muito ouro. Isto permite-lhes distorcer as prioridades de outras organizações criando situações que favorecem os interesses pessoais e comerciais destes mega “dadores”. Não é por acaso que muitos projectos de fundações cujos donos fizeram a sua fortuna em tecnologias de informação incentivam ao máximo a criação de sistemas de ensino e de saúde dependentes dessas mesmas tecnologias, criando oportunidades de lucro, de recolha indevida de dados e de habituação. Faz tudo parte do modelo de negócio. O fascínio saloio com novas tecnologias reluzentes faz esquecer a sórdida realidade de desequilíbrios de poder que está subjacente e que é encorajada a continuar a crescer. Será útil também fazer notar que apesar de terem objectivos “filantrópicos” estas organizações é suposto darem lucro. Sim é suposto acumularem ainda mais recursos e crescerem em tamanho e influência. Não há limites a priori para o que poderá vir a ser englobado nas suas acções e funcionamento.

Gates_contributionsDe forma ainda mais perversa estas fundações encorajam indirectamente os Estados a retirarem-se da vida social das suas próprias nações ao promoverem os habituais mantras da economia neoclássica: o estado é ineficiente, os privados podem fornecer bens públicos de forma mais barata, o estado é por definição mau e devia ser abolido em todas as esferas, enfim a habitual litania anarco-capitalista que nos deixaria a todos como servos apáticos e receptivos das boas vontades de uma dúzia de “filantropos” caprichosos. Ao abrigo de programas de inovação tecnológica as fundações dos oligarcas vão numa primeira fase condicionando todos os outros actores sociais e numa segunda fase talvez substitui-los de vez. Consegue-se perceber que num ambiente político em que os governos são reféns de agentes financeiros e não ousam tomar medidas verdadeiramente políticas com medo de “desvirtuar” os divinos preceitos das finanças públicas torna-se atractivo passar as responsabilidades de sectores deficitários a entidades privadas mesmo sabendo que se corre o risco que essas entidades tentem fazer experimentação social com os cidadãos. Também não ajuda o facto de alguns dos mesmos mega “dadores” estarem associados a empresas que contribuem de uma forma ou de outra para o sucesso dos nossos líderes políticos.

“Não deves honrar mais os homens que a verdade” - Platão

“Não deves honrar mais os homens que a verdade” – Platão

Portugal está um pouco fora do mapa da super “filantropia” em grande parte devido à sua pequena dimensão, falta de parceiros estratégicos relevantes e relativa proximidade ao coração europeu. Mas à medida que outras nações começarem a encontrar os problemas da entrega completa de sistemas sociais a estas fundações é inevitável que elas comecem à procura de alvos nas periferias. Entretanto existem alguns exemplos desta tentativa de entregar a sociedade ao controlo total dos oligarcas mas a uma escala bastante mais pequena e moderada, até porque os oligarcas portugueses não estão dispostos a fazer o mesmo nível de investimento que os seus homólogos estrangeiros. Concentram-se acima de tudo no domínio da informação e da publicação que usam para tentar desacreditar o Estado e fazer vingar na mente dos seus leitores mais incautos uma visão idílica do que é a realidade do sector privado em Portugal. Mas não tenhamos ilusões, não é uma questão de saber se o sector social será entregue a estes agentes privados mas uma questão de quando o será já que não existe oposição concertada a que tal aconteça. Existe uma resistência formal por parte de certos sectores mas a verdade é que as elites esses mesmos sectores aceitam escrever documentos e livros para estas fundações e aceitam participar em “debates” públicos patrocinados pelas mesmas fundações com a intenção de as validar socialmente. Acima de qualquer posição ideológica coerente está um espirito de classe que as elites de todos os sectores partilham e isso, juntamente com os benefícios pessoais acumulados pela sua participação, vencerá qualquer barreira que possa existir.

Autonomia e Estratégia

Como o Enclave e a Irmandade de Némesis têm vindo a demonstrar ao longo dos anos o actual debate nacional sobre o rumo a dar ao país reflecte em grande medida uma ficção. Não está de facto nada em debate. Ou dito de forma mais correcta o que está em debate por todas as forças políticas é apenas a forma e nunca a essência do sistema. E isto serve as elites de forma perfeita. Mantém as pessoas entretidas a discutir o sexo dos anjos enquanto as muralhas da cidade colapsam uma a uma. É verdade que alguns portugueses vão estando mais cépticos à medida que percebem os limites reais da nossa posição estratégica no mundo. Mas tristemente o efeito desta descoberta tende a ser a retirada do individuo da vida pública pois o cidadão desperto começa a desenvolver uma forte dissonância cognitiva face ao que o rodeia e ou é ostracizado ou acaba por se auto-exilar. As conversas que ouve e vê deixam de fazer sentido já que se entende que não têm qualquer relação com a realidade. Começa-se a ver as ilusões por aquilo que são, distracções para impedir que qualquer conversa nacional séria possa de facto existir. Começa-se a entender que os “princípios” e “ideologias” em grande medida não passam de capas retóricas com que se tapam os interesses mais cínicos de quem os defende ou na melhor das hipóteses conceitos vácuos que tentam mobilizar as massas para situações que ou são contra os seus melhores interesses ou não produzirão qualquer efeito. Tudo isto torna-se particularmente óbvio quando se discutem os modelos de desenvolvimento económico e as suas consequências políticas e sociais.

"The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers." - Zygmunt Bauman

“The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers.” – Zygmunt Bauman

As teorias económicas que estão em voga e que, teoricamente, visam optimizar os rendimentos das nações dos seus agregados empresariais insistem todas sobre um ponto, a especialização. Cada região deve focalizar-se apenas num elemento da produção de serviços ou produtos e importar o restante já que a dispersão por várias áreas não corresponderia a um óptimo económico (o máximo ganho de unidades monetárias pelo mínimo input de recursos). O corolário deste modelo é uma interdependência total dos países uns dos outros e necessariamente a fragilização de países mais pequenos e menos capazes de manter alguma diversidade de produção. Isto traduz-se em fórmulas econométricas que tentam expressar o risco associado à falha/colapso de um dos componentes deste sistema mais ou menos global. E como todas as fórmulas da economia clássica está sujeita a dois tipos de críticas: 1) O risco não se comporta de forma linear e o princípio base da económica clássica, ceteris paribus (e tudo o resto permanece igual), não tem validade, a instabilidade de um elemento toca na estabilidade todos os outros elementos e quanto maior o grau de interligação maior este efeito de contágio não intencional se torna – acaba por se tornar impossível ter uma ideia do risco real associado à maioria das falhas porque ele não respeita modelos matemáticos teóricos; 2) A interligação dos vários elementos deste sistema não divide o risco de forma equitativa, antes pelo contrário. Coloca grande pressão sobre os elementos mais pequenos que ao serem necessariamente mais especializados dependem apenas uma mão cheia de produtos ou serviços. Estão então duplamente dependentes. Dependem da manutenção de mercados externos muito específicos para escoar o seu excedente especializado e por sua vez dependem da existência da estabilidade de todos os outros mercados para assegurar a importação de todos os bens essenciais. Adicionalmente este sistema de avaliação de risco tende a ignorar que as grandes nações são indiferentes aos colapsos das pequenas nações mas que o inverso não é verdade, ou seja, a distribuição de risco não é apenas desigual como é mesmo inversamente proporcional ao poder económico e político de cada entidade nacional.

"It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence." - Voltaire

“It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence.” – Voltaire

Porque é que se seguiu este modelo de desenvolvimento? Porque a teoria alternativa caiu em desgraça. Diametralmente oposta a esta visão está a visão de autarquia – uma nação que organiza a sua vida económica no sentido de ser totalmente auto-suficiente. Há duas causas para o abandono deste modelo. Em primeiro lugar à medida que revolução industrial progredia e tecnologia se complexificava tornou-se claro que cada país não tinha a mesma distribuição de recursos naturais o que tornava a independência total como uma impossibilidade técnica. Em segundo lugar durante o século XX esta teoria de auto-suficiência extrema esteve associada a todo o conjunto de economias totalitárias (a Alemanha nazi é o caso mais óbvio) que exaltavam a nação de forna xenófoba e que viam as relações internacionais não apenas como o domínio da competição ou do conflito mas como apenas uma interminável guerra. Torna-se assim compreensível o abandono desta teoria em favor de uma que teoricamente daria lugar a menos tensões e conflitos e maximizaria os potenciais ganhos de cada nação. Mesmo os países que se sentem de alguma forma prisioneiros do sistema actual (a micro especialização) não encaram a autarquia como alternativa porque o choque de uma mudança de sistema causaria terramotos políticos, teria custos sociais elevados e seria questionável qual o nível de bem-estar que se poderia de facto proporcionar ao cidadão médio numa situação de autonomia total. Agora que o velho modelo continua descredibilizado e o novo parece estar próximo dos seus limites naturais e as suas falhas sistémicas começam a estar expostas as ansiedades populares sobre modelos de desenvolvimento credíveis e duráveis começa a aquecer já que não existe nenhuma nova ortodoxia no horizonte para substituir o que existiu até ao momento.

"For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually." - Ha-Joon Chang

“For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually.” – Ha-Joon Chang

De que adianta debater e discutir quando de facto não se quer sequer admitir os limites de cada uma destas escolhas e não se pondera a situação estratégica específica de Portugal? É útil colocar os termos do debate sobre uma forma partidária? Útil para quem? Há noção das consequências caso se queira desbravar novos caminhos? Há uma cultura de liderança política forte o suficiente para assumir esse risco? Existe vontade e coragem popular para aceitar de frente os imensos riscos quer para permanecer num modelo económico esgotado quer para explorar outras alternativas? Em última análise temos que ser extremamente cépticos quanto a qualquer possibilidade de mudança real que não provenha de um desastre exógeno, algo além do nosso controlo e iniciativa. Quer no topo quer na base a nossa sociedade tem falhas graves que nunca foram colmatadas e que nos tornam incapazes de tomar escolhas estratégicas coerentes. A Irmandade de Némesis recomenda a todos os cidadãos despertos (sejam membros ou não) cuidado em se envolverem no “debate” nacional, não nos devemos guiar por ficções e interesses alheios ao país. Só uma renovação dos valores da esfera pública pode trazer a revitalização necessária para voltarmos a ser capazes de fazer escolhas independentes e relevantes.

Contemplação como realidade

Na nossa sociedade moderna há uma notável aversão á introspecção pessoal. Vivemos de tal forma absorvidos pela nossa realidade social que nos esquecemos que em última análise somos mais do que a soma das nossas interacções com outras pessoas ou com objectos. Esta habituação social induz muitas vezes o erro de atribuir a causalidade das nossas acções a terceiros, em particular pessoas colectivas (estados, empresas, igrejas, clubes, etc). E claro que ninguém poderá, em boa fé, negar o extraordinário poder que estas pessoas colectivas exercem nas nossas realidades mas é preciso lembrarmo-nos que existe um campo de acção e contemplação que é apenas e só nosso, individual e não partilhável. Ou seja existe um espaço nas nossas vidas que apenas nós podemos preencher e perguntas a que apenas nós podemos responder. Depois de admitirmos que temos uma esfera que é apenas nossa torna-se necessário enterrar, de uma vez por todas, o mito que esse espaço e essas perguntas são apenas curiosidades intelectuais para quem tem tempo ou recursos. Antes pelo contrário são esses dois elementos, e a forma como lidamos com eles, que produzem quem somos realmente, geram o nosso verdadeiro “eu”.´

"Each of us assumes everyone else knows what HE is doing. They all assume we know what WE are doing. We don't...Nothing is going on and nobody knows what it is. Nobody is concealing anything except the fact that he does not understand anything anymore and wishes he could go home." - Philip K. Dick

“Each of us assumes everyone else knows what HE is doing. They all assume we know what WE are doing. We don’t…Nothing is going on and nobody knows what it is. Nobody is concealing anything except the fact that he does not understand anything anymore and wishes he could go home.” – Philip K. Dick

A hostilidade declarada que muitos têm ao conceito de interioridade, perpetuada durante anos ou décadas, leva a uma mentalidade de irresponsabilidade e inconsequência já que quem acredita que nada do que acontece depende das suas acções ou escolhas tem poucos incentivos a assumir compromissos – muitos chegam ao extremo de negar que possuam qualquer tipo de escolha, descrevendo a sua realidade como apenas experienciando o que outros criam. Torna-se assim clara a “genealogia” da ideia de impotência e da projecção dos nossos sonhos e esperanças em terceiros. Começamos a entender porque é que necessariamente a esfera política é incapaz de satisfazer as ambições de tantos cidadãos. A política, tal como a praticamos actualmente, assenta sobre a negação do individuo, da sua abdicação de poder pessoal e a sua transmissão a uma entidade mais ou menos abstracta (partido político, facção, ideologia, etc) a troco de uma promessa de realizar aquilo que cada um de nós espera. Será este mecanismo inerentemente perverso? Não necessariamente. Numa democracia representativa saudável este processo serve um propósito honesto e honrado, atingir compromissos em questões abrangentes que nenhum individuo pode esperar resolver sozinho. Ou seja, num sistema representativo saudável estamos perante uma transmissão de poder revogável, pontual e limitada. O problema surge quando a transmissão de poder se torna absoluta quer em termos de tempo ou âmbito. O caminho de todos os abusos começa com a asserção de intemporalidade do poder transmitido ou com a criação de um âmbito “total” que, por teoricamente representar o poder transmitido de todos os cidadãos, não conhece limites.

O Homem sem vida interiorSe isto é verdade qual o porquê da insistência dos cidadãos na exclusividade de soluções colectivas irreflectidas? Em boa parte porque há um grau de absolvição moral que pode ser encontrado num sistema anónimo e que não responde bem às aspirações dos indivíduos. Se as coisas correrem mal a culpa não será minha enquanto individuo porque eu não consigo influenciar o funcionamento de organizações complexas muito além do meu nível de poder. Isso de alguma forma liberta o individuo, que passa a abandonar todas as suas responsabilidade enquanto ser humano porque teoricamente cumpriu o seu dever cívico. Deixa de ser necessário comtemplar o nosso interior e analisar a nossa posição e podemos começar a encarar o “outro” com um mero objecto com o qual interagimos – algo que nega a dignidade quer do objectificador quer do objectificado. Ao descarregar as nossas dúvidas, preocupações e obrigações num sistema que sabemos que não pode responder às nossas necessidades estamos a dar-nos licença para nos abstrairmos da realidade, para nos abstrairmos de nós próprios. É nesta altura, em que abandonámos o nosso “eu” real, que todas as nossas actividades se transformam em escapes pouco saudáveis. A procura bem-estar material degenera numa fome que não pode nunca ser satisfeita, o prazer transforma-se em algo que não é apreciado mas procurado de forma compulsiva, a crítica transforma-se num processo meramente destrutivo (um fim em si mesmo e não uma ferramenta) e o apoio aos outros algo meramente pontual para satisfazer uma consciência profundamente culpada. E tudo isto porque negámos a nossa interioridade. Porque nos recusámos a parar e desligar um pouco do mundo para reflectir e comtemplar as perguntas base de qualquer corrente filosófica digna desse nome: o que somos, onde estamos, quem somos e o que devemos fazer.

“... it’s just business, it’s politics, it’s the way of the world, it’s a tough life and that it’s nothing personal. Well, fuck them. Make it personal." - Richard K. Morgan

“… it’s just business, it’s politics, it’s the way of the world, it’s a tough life and that it’s nothing personal.
Well, fuck them.
Make it personal.” – Richard K. Morgan

É preciso voltar a abraçar a ideia que aquilo que somos não é reflectido apenas pelas nossas lealdades sociais (e como tal exteriores a nós próprios). Somos essencialmente definidos pelas respostas que damos a questões muito básicas e pelas acções que essas respostas geram. E não falamos aqui de respostas no molde político tradicional. Não se trata de nos diluirmos a nós próprios dentro do grupo A ou B mas sim das acções e escolhas que estão dentro do nosso campo de acção individual, aquele que é apenas nosso, que reflecte a nossa dignidade e que ninguém nos pode tirar. É aí que jaz a nossa essência e tal essência só pode ser perdida ou abandonada de forma voluntária. É isso que fazemos quando nos recusamos a contemplar e a agir, negamo-nos a nós mesmos.

O programa eleitoral de todos: Regionalizar

Se há medida que as tribos da direita e da esquerda concordam é que a solução para os males do nosso país é regionalizar tudo que é organismo público. A desagregação do poder político traria de forma mágica ordem, paz e prosperidade a uma situação caótica. Já houve referendo sobre a matéria (não vinculativo) e a resposta dos eleitores foi “não”. Mesmo que apenas de forma instintiva e não sistemática os portugueses intuíram, correctamente, que havia algo de fundamentalmente errado com a fragilização do estado e dos seus, já escassos, poderes organizacionais. Pareceu-lhes estranho que o poder local fosse glorificado e recompensado quando é precisamente o ramo do poder democrático que menos sucesso teve desde a sua implementação. Sendo ainda mais brutais as duas situações de regionalização que tivemos, a municipalização e as regiões autónomas, representam os maiores fiascos democráticos desde o 25 de Abril. A municipalização não trouxe qualquer desenvolvimento ao país, não criou qualquer proximidade real ao cidadão, não impediu que a corrupção florescesse, não dinamizou o interior, em suma, não alterou uma vírgula às dinâmicas económicas e sociais que já estavam presentes em cada município. Serviu, e serve, apenas para criar cargos partidários intermédios e institucionalizar de forma democrática os caciques que governam as várias localidades desde pelo menos o século XIX. Quanto à regionalização a realidade quotidiana fala por si, as duas regiões autónomas são perpetuamente deficitárias, com elevadíssimos (até pelo standard português) níveis de disparidade de rendimentos sendo que a Madeira em particular conheceu um ligeiro boom devido às suas actividades como zona franca (sem que esse dinheiro que passou pelas ilhas tenha trazido qualquer beneficio ao cidadão médio da região).

"O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. " - José Ortega y Gasset

“O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. ” – José Ortega y Gasset

É neste contexto que os movimentos políticos tribais voltam a insistir na regionalização como relíquia sagrada da recuperação nacional. Percebendo há muito que os portugueses, apesar de serem inconsequentes, não são totalmente cegos e que não apoiariam qualquer formalização de transferência de poder para as regiões (muito menos a criação de todo um serviço público regional cravejado de nomeados políticos) as tribos de esquerda e direita apostam agora numa transferência não oficial e gradual, no fundo querem fazer a coisa lentamente, pela calada, para no fim apresentar a regionalização como um dado adquirido que já não é possível alterar – levando a uma formalização política depois dos factos. Todo o regime concorda, porque todos os componentes do regime apreciam a criação de cargos partidários e gostariam de ter mão livre nos seus “feudos ancestrais”. A retórica usada para atingir este fim tem sido essencialmente a dos serviços de proximidade e da “responsabilização” do cidadão a nível local. Claro que isto é falacioso já que o poder não está a ser devolvido ao cidadão, está a ser entregue às máquinas partidárias locais. Mas além do ganho imediato há razões mais profundas para este consenso informal do regime quanto à necessidade de dissolver ao máximo o estado central:

– As estruturas municipais ou regionais (se forem criadas) têm muito menos capacidade de resistir a pressões de grandes empresas, ou seja, o que hoje é negociado pelo estado central pode passar a ser negociado por um presidente de junta que terá um espaço de manobra inexistente quando confrontado com o poder económico.

– As oportunidades de corrupção multiplicar-se-ão já que as decisões passarão a estar dependentes não de uma autoridade central que é visível e é responsabilizada mas sim de múltiplas autoridades locais fragilizadas e sem vontade de antagonizar seja quem for.

– As privatizações que o estado central ainda não teve coragem de fazer serão agora efectuadas informalmente por autoridades locais que alegarão que não têm nem recursos nem vontade de se encarregarem directamente das suas novas responsabilidades.

– Ao colocar-se numa posição de observador o Estado está de facto a encorajar a experimentação social na sua própria população já que esquemas que seriam considerados arriscados ou pouco éticos poderão dentro de um modelo regional ser testados numa escala mais pequena sem que a maior parte do país sequer se aperceba do que se está a passar.

– As críticas que ainda se podem ouvir às medidas políticas mais absurdas serão silenciadas num sistema regional já que localmente as redes de dependência são muito mais fortes e os castigos muito mais pesados e rápidos – não é por acaso que as pequenas localidades são exemplos perfeitos de unanimismo, não há espaço social para contestar.

– Ao anular grande parte dos poderes de um estado central a Bruxelas consegue submeter ainda mais Portugal já que para muitos projectos passará a lidar directamente com autoridades regionais. Podemos chegar a uma situação em que caso exista oposição a máquina burocrática da UE pode utilizar regiões autónomas umas contra as outras.

"O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele." - Pierre Choderlos de Laclos

“O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele.” – Pierre Choderlos de Laclos

Por tudo isto não podemos ter dúvidas que seja quem for que assuma o poder nos próximos tempos o programa de medidas a médio prazo será o mesmo: medidas de proximidade, ou seja, uma regionalização encapotada que visa aprofundar o grau de feudalização da sociedade portuguesa. Enquanto as tribos da esquerda e da direita entretêm o país com danças guerreiras coreografadas e competições poéticas sobre quem é mais puro nas suas intenções o grosso das suas intenções reais passa ao lado do cidadão médio. Embevecido com o entretenimento e anodinamente seguro nas suas lealdades sectárias não lhe ocorre começar a ligar os vários silêncios estratégicos para criar uma imagem mais clara do que realmente se vai passar – convém lembrar aos leitores mais distraídos que em Portugal o que não é dito é sempre mais importante e revelador do que aquilo que é dito. Seja quem for que ganhe o próximo concurso de popularidade a resposta será essencialmente a mesma: devolver Portugal ao estado de caciquismo puro e duro.

"As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material." - John Galbraith

“As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material.” – John Galbraith

O anseio de mudança que grande parte dos portugueses sente será explorado implacavelmente criando ilusões sobre o que será realmente feito e com que objectivos. Os que se consideram mais “informados” serão ironicamente os mais manipulados e enganados pois acreditam que a mudança de linguagem e o falso protesto vão surtir efeito sobre uma elite que é inamovível. Acreditam piamente que as suas puras intenções, expressas de uma forma moderada e inepta típica da classe média (apesar de muitos destes cidadãos já não estarem nos escalões de rendimento correspondentes a uma classe média), serão respeitadas uma vez acabado o show eleitoral, esquecendo-se que o substrato dos seus projectos “alternativos” é controlado por pessoas que estão perfeitamente integradas nas nossas elites nacionais e cujas pretensões ideológicas de “radicalidade” não passam de uma afectação estética. Quando os dados estiverem lançados acabarão por tomar as mesmas decisões que todos os outros que os precederam porque no fundo não ambicionam qualquer rotura com o regime. A miragem de uma retoma económica eminente combinada com um desejo profundo de uma resolução mágica que não envolva qualquer acção pessoal combinam-se para criar a próxima desilusão.

A formação da opinião pública

As pessoas gostam de acreditar que a sua opinião sobre política, economia e assuntos sociais é baseada só e apenas nos factos. Há algo de “nobre” em acreditarmos que somos neutros face a assuntos que desconhecemos mas que quando nos explicam os factos somos capazes de tomar uma decisão justa mas sem paixões inflamadas. Mas em que medida é que nos conseguimos (ou queremos) realmente distanciar de tudo o que nos rodeia para tomar uma decisão neutra? Até que ponto conseguimos sequer obter informação correcta sobre todos estes temas? Até que ponto estaríamos de facto dispostos a levar esta linha de questionamento sem temer o que pudéssemos encontrar?

"Raros são aqueles que decidem após madura reflexão; os outros andam ao sabor das ondas e longe de se conduzirem deixam-se levar pelos primeiros." - Séneca

“Raros são aqueles que decidem após madura reflexão; os outros andam ao sabor das ondas e longe de se conduzirem deixam-se levar pelos primeiros.” – Séneca

Seremos de facto neutros à partida face a todas as questões? Dizer que sim implicaria que a) não temos qualquer experiência prévia que influencie a nossa decisão e b) somos imunes ao meio onde nos movimentamos e às opiniões que vemos circular à nossa volta. Se a primeira condição é uma impossibilidade empírica e relativamente fácil de aceitar a segunda já obriga a algum grau de introspecção. Todos nascem num determinado contexto que é determinado pelas condições e preferências daqueles que nos rodeiam de forma directa ou indirecta. Logo não há uma neutralidade inicial, existe sim uma predisposição, maior ou menor consoante o grau de independência do individuo face ao grupo (familiar, social, profissional), para aceitar posições e opiniões que coincidam com que aquilo que o nosso meio considera válido. Conseguimos aceitar que grande parte da nossa visão do mundo é determinada sem qualquer contributo nosso? Conseguimos pensar em nós mesmos como sendo, em grande medida, seres racionais que apenas absorvem valores e opiniões que alguém antes colocou à nossa frente? Ou seja, conseguimos abdicar da nossa crença que somos seres com um elevado grau de autodeterminação?

"Logo que, numa inovação, nos mostram alguma coisa de antigo, ficamos sossegados. " - Friedrich Nietzsche

“Logo que, numa inovação, nos mostram alguma coisa de antigo, ficamos sossegados. ” – Friedrich Nietzsche

Poder-se-á dizer que a nossa visão e opiniões não são apenas formadas pelo meio em que por casualidade nos encontramos. Que existe um processo mais activo de recolha de informação por parte do individuo e que esse processo é que em última análise determina de facto aquilo que pensamos e defendemos. Será mesmo assim? Para entender bem a questão e os processos internos e externos que ela implica é preciso olhar para dois elementos diferentes. Em primeiro lugar é preciso verificar se a informação que pesquisamos sobre qualquer tema tem suficiente força emocional para se sobrepor às “nossas” posições originais. Neste ponto temos que introduzir na nossa análise um pouco de “matemática emocional”. É preciso “calcular” o conjunto de benefícios que são acumulados quando aceitamos a opinião do meio e aqueles que podem ser acumulados quando se adopta uma visão dissonante da maioria – este modelo comportamental tem uma base realista e como tal pressupõe que a maioria (mas não todos) tende a adoptar, consciente ou inconscientemente, o traje ideológico/social/político que mais o beneficie quer em termos de aceitação pelos seus pares quer em termos de ganhos materiais concretos. Dizer que sim ao que o nosso meio nos transmite (filtrando adequadamente a informação que vamos recolhendo) trás consigo benefícios tangíveis. Dentro do nosso grupo já que passamos a ser vistos como alguém que “entende das coisas”, que é ponderado e moderado, que entende o que é a realidade e consequentemente seremos levados mais a sério. Além de garantir uma boa integração a concordância indica também a quem mantém o sistema a funcionar (seja qual for o sistema) que estamos disponíveis para defender o status quo, que não iremos abanar demasiado o barco, que seja qual for a realidade empírica estaremos disposto a ignorá-la e seguir os ditames que nos transmitem. Por outro lado dizer que não ao que nosso meio nos transmite coloca-nos à margem dos nossos pares já que em maior ou menor grau as nossa posições serão diferentes, terão nuances, serão mais excêntricas. Em suma: sairão dos limites do curral intelectual. É fácil ver para que lado a balança de ganhos pende.

"The aim of public education is not to spread enlightenment at all; it is simply to reduce as many individuals as possible to the same safe level, to breed and train a standardized citizenry, to put down dissent and originality. " - H.L. Mencken

“Conformity—the natural instinct to passively yield to that vague something recognized as authority.” – Mark Twain

Existem aqueles que apesar de tudo têm ainda integridade suficiente para reconhecer que o que lhes é transmitido pelo meio poderá não estar correcto ou ser mesmo pouco ético. Poderão mesmo resistir activamente ao que os seus pares lhe transmitem como “verdade”. Nesse caso este cidadão íntegro terá que partir numa demanda por nova informação. Tem que procurar histórias, interpretações e análises que correspondam de facto ao que ele experiencia. E aqui entramos no campo da capacidade individual de recolher e filtrar a informação que não é transmitida por laços sociais directos – especificamente aquela informação que não deriva de contacto pessoal e nesta categoria estão as tvs, os jornais, os livros, os blogues, etc. Estamos em águas familiares em que sabemos que é preciso questionar muito seriamente a posição e credibilidade dos criadores e divulgadores de informação. Isto torna-se especialmente urgente em países como Portugal que promovem uma cultura de endogamia mal encoberta em quase todas as posições de produção de conteúdos. É preciso estar alerta face a contaminações da informação por interesses pessoais, familiares, amizades de longa data entre outras formas de influência indevida. Dado o reduzido número de informação disponível em língua portuguesa e estas limitações à credibilidade da pouca informação que existe é caso para dizer que quem se limite ao material em português verá os seus horizontes tão severamente limitados que a sua demanda por explicações que fujam ao controlo do nosso meio social, político e económico se torna impossível.

Pascal - truth quotesNo fim desta pequena análise do nosso contexto e das nossas características pessoais podermos acreditar que, nas presentes condições, existe uma verdadeira opinião pública interessada em estar informada? Os indícios que discutimos parecem apontar precisamente para o oposto. Não é do interesse do cidadão questionar o que lhe é transmitido. Em muitos casos não lhe será sequer possível construir qualquer narrativa alternativa para que vê. O que fazer com esta conclusão? Devemos começar por admitir perante nós próprios que os termos em que actualmente se discute a nossa sociedade não são nossos. São um legado sobre o qual, individualmente, não temos qualquer controlo. Daí a frustração que muitos poderão sentir ao ver a estagnação das respostas oficiais apresentadas pelos grupos considerados como socialmente válidos (que possuem status, que são “levados a sério”, que possuem os recursos para recompensar socialmente). Que a procura por respostas que fujam a essa estagnação é acima de tudo algo que tem que partir do individuo. Que esse individuo terá que ser motivado por algo mais que apenas uma lógica de custo-benefício. Terá que possuir a inclinação pessoal para a acção ética. Trata-se de um processo heróico, uma verdadeira demanda épica que requer indivíduos com um conjunto de aspirações pouco comuns apesar de serem mais necessárias que nunca. Só saindo dos moldes pré-fabricados poder-se-á encontrar qualquer tipo de verdade e acima de tudo de justiça. O leitor terá coragem para tanto?

O fetiche da comunicação

A abundância de conteúdos no nosso tempo levou a um certo endeusamento do debate e de toda a comunicação em geral. De algo utilitário (uma ferramenta se quisermos) passou a ser algo que é um fim em si mesmo. Já não serve um propósito. De facto é uma forma de evitar ter um propósito. O falar sobre algo substitui a interacção real com o objecto, o que por sua vez o transforma numa virtualidade. As pessoas falam demasiado porque têm medo de agir sobre seja o que for. Falam porque isso não tem consequências. Falam porque fogem da realidade. E enquanto alguma forma de conforto material persistir a maioria continuará contente neste jogo de auto-engano. Enquanto houver alguém abaixo na hierarquia socioeconómica que o cidadão comum possa desprezar haverá a ilusão que de alguma forma se é especial, que se entende o que se passa e que no fim as coisas até vão correr bem. A corrupção intelectual que esta mentalidade causa é particularmente danosa por ser auto-induzida.

"Quem julga caçar é caçado" – Jean de la Fontaine

“Quem julga caçar é caçado” – Jean de la Fontaine

Pois ao contrário do que a maioria dos psicólogos modernos opina esta situação não é um processo inconsciente para a maioria das pessoas. Os cidadãos estão perfeitamente cientes do impacto real do seu discurso (zero) e preferem ser inexistentes a arcar com responsabilidades. Esta forma de estar na vida leva inevitavelmente a uma certa destruição das barreiras entre o que é entretenimento e o que é suposto ter significado – já que quer o discurso sobre coisas “sérias” quer a ficção obtêm o mesmo resultado real: zero. E aqui entramos no campo da proliferação descontrolada de conteúdos sobre tudo o que se possa imaginar. É esta uma das causas dos ciclos noticiosos de 24 horas ininterruptas, das redes sociais, etc. Ao retirar a possibilidade de um discurso que leve a algo real e concreto a comunicação degenerou numa forma de entretenimento com meros objectivos propagandísticos e comerciais.

"Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante" – George Orwell

“Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante” – George Orwell

É esta dose de informação indiferenciada (em que o ficcional e o real não se distinguem), que se tornou uma droga altamente aditiva para tantos, que leva ao estrangulamento da sociedade civil. Porque a acção política, social e económica não se compadece com as necessidades emocionais dos cidadãos, ela é necessária mesmo que os cidadãos apenas estejam interessados numa interminável conversa sem objectivo. Dado este caos mental não é portanto de estranhar que até os meios de informação, nominalmente, livres (como blogues ou fóruns) se comportem como produtores de conteúdos comerciais. Multiplicam os temas e posts diários numa tentativa de dar ao utilizador a dose de droga “informativa” que ele quer, mesmo quando o necessário é uma desintoxicação e uma religação com a realidade. Numa tentativa de permanecer relevantes acabam por ser submersos num mar de símbolos e imagens.

"Where there is power, there is resistance" – Michel Foucault

“Where there is power, there is resistance” – Michel Foucault

Para quem quiser emergir desta inundação de trivialidades ficcionais o caminho é relativamente simples ainda que nem sempre agradável. Será necessário começar a aceitar que muitas vezes a realidade não satisfaz as nossas necessidades e que os substitutos fictícios só nos alienam e colocam ainda mais longe da possibilidade de um dia ser capaz de suprir essas necessidades. Em segundo lugar terá que começar por procura um porto seguro, uma fundação sólida onde possa reconstruir a sua pessoa sem interferências nem agendas – é essa uma das funções da Irmandade de Némesis. E por último começar a viver coerentemente com aquilo que se pensou, com quem somos e queremos ser. A longo prazo quem seguir este caminho encontrará estabilidade, saberá distinguir o real do falso e acima de tudo será capaz de acção real (que cause mudanças tangíveis) sem se deixar enganar por opiáceos intelectuais. Quanto aos que se afastam de um caminho de individuação e de realismo é escusado falar. Pertencem ao grupo dos náufragos da sociedade moderna. Perderam-se em alto mar e no seu delírio deixaram de ter a capacidade de distinguir entre as suas alucinações e o que realmente existe.

The Long Haul

The Long Haul – NO

We’ll be fine I’m sure
Just use the other door
I wanna have a house like they did

We wrestled till we cried
They fucked our state of mind
Don’t celebrate me ‘cause I’m jaded

Welcome to the storm
We’re babies till we’re born
Then adults from our first day breathing

Our innocence was staged
The jury all got paid
I’d lock it but it’s not worth stealing

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

We’ll be fine I’m told
Together we’ll grow old
So kiss me till the last train leaving
Then stand yourself by me
We’ll fall until we’re free
This helium prefers no ceiling

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

It must get better than this
Cause as far as I can see
The world belongs to me
There’s a place at your table with my name on

When we walk
They roll the carpet out at our feet
And when we talk
They gather around in chairs on the street
Cause we’re the kings of imagining things

When the drunks start singing this way
Babies got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
Hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

We’ll be fine I’m sure
Just use the other door
I wanna have a house like they did

O novo normal

O mundo muda rapidamente e nas últimas décadas o processo parece estar em aceleração. Não porque o prometido mundo híper tecnológico nos tenha aberto novas portas mas precisamente porque falhou em cumprir as suas promessas de um futuro melhor. Qualquer pessoa que fosse um adulto nos anos 70 quase não consegue reconhecer a dimensão das mudanças ou dos problemas que parece que se multiplicam diariamente. Tais pessoas têm a tendência de ficar presas a modos de percepção e pensamento que já não coincidem com o mundo em que vivem, habitam em grande parte no passado apesar dos seus corpos estarem no presente.

“Construímos estátuas de neve e choramos ao ver que derretem” – Walter Scott

“Construímos estátuas de neve e choramos ao ver que derretem” – Walter Scott

Os fenómenos eleitorais no mundo ocidental (e falo deste canto do globo porque a) é onde vivemos e b) grande parte do resto mundo nunca chegou a ter democracias reais) têm-se degredado com o passar dos anos. Isto é mais visível nas taxas de abstenção crescentes em todos os países – ou seja, não se trata de algo isolado ou dependente de condições locais. É fácil para os comentadores integrados no sistema ignorarem esta situação limitando-se a falar de um desinteresse por parte dos cidadãos face à política. Assim arrumam o assunto e responsabilizam o eleitor por qualquer falha que apareça no funcionamento das instituições. Mas, como sempre, a realidade é mais complicada. Não só o interesse pela vida política está a desaparecer como as próprias lealdades daqueles que ainda votam estão a tornar-se mais voláteis. Criando padrões de governo cada vez mais erráticos e sem estratégia de longo prazo.

“A fé pode ser definida, em resumo, como uma crença ilógica na ocorrência do improvável” – Henry Mencken

“A fé pode ser definida, em resumo, como uma crença ilógica na ocorrência do improvável” – Henry Mencken

As instituições Europeias (e alguns dos principais países da União) têm estado muito atentas a este fenómeno sendo que na década de 90 chegaram a uma decisão final. Não iriam ficar dependentes de qualquer ordem política que pudesse emergir deste caos. Foram cortando os vários elos que as ligavam a uma legitimidade democrática e investiram na criação de um novo mito. O do perito. Consequentemente as suas decisões têm-se revestido cada vez mais de um carácter teoricamente “neutro” e técnico, de forma a poder afirmar a independência e validade seja qual for o resultado do caos democrático. Os que tiverem uma memória um pouco mais longa que a maioria conseguirão com certeza lembrar-se de debates de há uma década atrás em que desesperadamente se queria colmatar o défice democrático da União Europeia. Face a estes novos desenvolvimentos é fácil perceber que as instituições da UE não estavam verdadeiramente empenhadas na questão. Estavam apenas a comprar tempo. Enquanto os debates se arrastavam dentro e entre nações a UE já estava a restruturar a sua organização segundo um novo critério, o de uma suposta tecnocracia. Quando o processo ficou concluído havia compreensivelmente pouco interesse em continuar o debate sobre o défice democrático já que a prestação de contas perante o eleitorado tinha perdido quase toda a sua relevância.

Este processo não se deu apenas ao nível de uma burocracia europeia mas também dentro de todos os países centrais da União. À medida que a UE provava que conseguia estabelecer credibilidade baseando-se apenas no seu estatuto como supostos peritos os vários governos relevantes do continente foram replicando as mesmas ideias e estruturas dentro das suas fronteiras. O resultado foi um agravamento severo da apatia e volatilidade eleitoral (explicando a subida por toda a Europa de partidos extremistas e, ironicamente, profundamente antidemocráticos) levando a que o distanciamento entre o cidadão e o poder deixasse de ser um fosso para passar a ser um abismo. Fica assim mais claro porque é que nas últimas décadas temos vindo a assistir a um amalgamento das tendências e partidos políticos, tornou-se irrelevante saber o quadrante político das entidades partidárias porque as decisões verdadeiramente relevantes foram transferidas para entidades de “peritos” que não se sujeitam a qualquer escrutínio.

“The point is that we are among those who cannot get their mouths around all the little Yeses that add up to tacit acceptance of a world run by crackpot realists and subject to blind drift. And that, you see, is something to which we do belong; we belong to those who are still capable of personally rejecting. Our minds are not yet captive.” – C. Wright Mills

“The point is that we are among those who cannot get their mouths around all the little Yeses that add up to tacit acceptance of a world run by crackpot realists and subject to blind drift. And that, you see, is something to which we do belong; we belong to those who are still capable of personally rejecting. Our minds are not yet captive.” – C. Wright Mills

Os países da periferia apesar de também se irem adaptando ao novo sistema estão um pouco desfasados dos países centrais ou das instituições europeias, mas agora que os pânicos financeiros acalmaram um pouco (e os interesses dos credores foram assegurados de e transformados numa obrigação perpétua) começamos a sofrer pressão para acelerarmos o ritmo da adaptação. E na primeira linha desta transformação está a legalização do lobbying. Só a menção deste termo gera desconfiança no cidadão médio que vê nela apenas a legalização do que até então se fazia a portas fechadas. E em grande medida a sua desconfiança é justificada já que Bruxelas e Washington (os centros mundiais de lobbying) não são conhecidos pela sua transparência apesar da abundância de legislação a regular esta actividade. Mas as consequências são algo maiores do que apenas maquilhar o que hoje seria considerado pouco ético ou mesmo ilegal. No centro do lobbying está a ideia de que qualquer grupo (seja ele qual for, cidadãos, empresas, grupos religiosos, etc) pode e deve pressionar os governos e parlamentos a agir da forma que lhes é conveniente, mesmo que isso desrespeite completamente os direitos fundamentais de outros. Claro que isto abre uma verdadeira caixa de Pandora. Aceitar o lobbying como parte normal do processo político e social é escrever no contrato social que o dinheiro pode comprar acesso e influência. É admitir que nem todos somos iguais. É negar a ideia de justiça. É dizer que somos ouvidos apenas na medida do que podemos pagar. É organizar a sociedade como uma gigantesca entidade comercial que responde apenas aos seus accionistas.

“You read constantly that banks are lobbying regulators and elected officials as if this is inappropriate. We don’t look at it that way” – Jamie Dimon  (CEO da JP Morgan Chace)

“You read constantly that banks are lobbying regulators and elected officials as if this is inappropriate. We don’t look at it that way” – Jamie Dimon (CEO da JP Morgan Chase)

O que acontece a quem não tiver dinheiro para comprar acções deste projecto? Ainda fará parte do contrato social? Em que medida? Será que mesmo aqueles grupos que representam causas legítimas (direitos humanos, luta contra a pobreza, acesso à justiça, entre outras), e que têm disciplina organizacional e fundos suficientes para ter voz, acreditam por um segundo que conseguem reunir os meios para igualar ou superar qualquer grande empresa ou sector económico?

Como é normal num sistema com graves deficiências de funcionamento, e com um grau de apoio popular cada vez mais estreito, as decisões mais importantes são remetidas para acordos mais ou menos secretos e comissões políticas e jurídicas labirínticas de forma a que o resultado seja ou ocultado ou incompressível. Algo que tem o poder de restruturar por completo o equilíbrio de poder entre os cidadãos e que de facto voltar a introduzir critérios de voto censatários (voto cuja existência ou peso depende do rendimento do eleitor) tal como existiam no século XIX pode ser aprovado sem que o cidadão médio compreenda 10% das consequências que tal acarreta a longo prazo. De facto seguindo o retrocesso lógico os próximos passos seriam a permissão de compra de votos (afinal tratar-se-ia apenas de uma troca económica e não de algo político) e o estabelecimento de “votos especiais” (com mais peso) para determinados actores que sejam considerados como “especialmente relevantes” para a sociedade. Podemos esperar uma feroz campanha nos corredores do poder por parte dos nossos “liberais”, ao serviço dos seus empregadores, e se não houver qualquer reacção popular a esta reclassificação dos cidadãos em categorias económicas podemos ter certeza que irão sempre pressionar para que se vá mais longe. Até onde perguntarão? Até onde os deixarem.

“Arrependimento é a virtude das mentes fracas” – John Dryden

“Arrependimento é a virtude das mentes fracas” – John Dryden

Se mais uma vez o cidadão se fechar na sua concha de apatia e hedonismo e não prestar a devida atenção ao que se está a passar perderá qualquer credibilidade para vir reclamar daqui a 5 ou 10 anos. A sua oportunidade de acção é agora. Enquanto o processo ainda está num estágio embrionário. Depois será tarde demais, quer politica quer moralmente. O cidadão tem que se convencer que nem tudo na nossa realidade é reversível. Nem tudo pode ser corrigido. Nem sempre há mais tempo para “pensar” e debater. Há decisões que uma vez tomadas são permanentes.