A vigília de Némesis

A humanidade tem uma tendência para criar padrões de comportamento. Isto é algo positivo. Foi o que nos permitiu formar o que chamamos “civilização”. Pouco a pouco fomos repetindo padrões que sabíamos que iriam produzir um pequeno efeito positivo nas nossas vidas. Estes padrões foram por sua vez revestidos por uma camada mitológica que nas civilizações do mediterrâneo tendiam para formar uma narrativa de ordem versus caos. Permitam-me um exemplo: Set ameaçava a ordem do Egipto até que os esforços combinados de uma trindade conseguiram restabelecer a ordem das coisas – é o que relata uma versão do mito do assassinato de Osíris às mãos de Set. Após matar Osíris, Set esquarteja o seu corpo espalhando as partes pelo Egipto para nunca poder ser recomposto, Isis, consorte de Osíris, parte na demanda de voltar a unir as partes e é bem sucedida conseguindo ressuscitá-lo; da sua união nasce Hórus que mais tarde, ao atingir a idade adulta, vem a repor a ordem no Egipto depondo o seu tio Set, ainda que perdendo um olho no combate. Este tipo de relato serve para exemplificar a criação de um padrão de restauração. De ordem. Mas, abandonando o Egipto faraónico, no presente estamos presos no padrão inverso, um ciclo negativo de criação de caos que não sabemos inverter.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

Portugal está entregue ao caos mais profundo que é possível existir, aquele que tolda a mente dos Homens ao ponto de nem o reconhecerem. O caos confundiu as pessoas ao ponto de entorpecer o seu discernimento e fez grande parte de nós esquecer-se de quem somos e, talvez ainda mais importante, quem queremos ser. Há muito que a Irmandade de Némesis alerta para o facto de a política em Portugal já não ser de facto política, mas apenas a mera gestão da sobrevivência das elites. As tribos da direita e da esquerda “digladiam-se” num espetáculo artificial que visa apenas criar diferenças para o consumidor… perdão… o eleitor poder fingir que tem uma escolha. O caos oferece sempre uma miríade de opções na tentativa de esconder que todas elas são igualmente estéreis. É cansativo ver como os senhores deste aparelho decrépito não retiraram lição nenhuma da crescente fragmentação partidária e da indiferença de um número crescente de eleitores. As palavras de ordem repetem-se, as críticas são as mesmas, as peças de teatro parecem ter sido escritas pelo mesmo autor. A única coisa que muda são os nomes que estão de cada lado. Até para o espectador mais desatento isto começa a provocar uma estranha sensação de déjà vu.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

No essencial o regime está esgotado. E continua esgotado porque o voto é apenas uma ferramenta formal que escolhe candidatos pré-seleccionados e pré-aprovados por quem detém de facto as rédeas deste país nas suas mãos. O cidadão comum continua a confundir o “Estado” com o poder real. Na realidade o Estado tem sido esvaziado progressivamente de poder efectivo. Entre as parcerias que mantém com o sector privado, as cedências de competências indevidas ao poder local e o efeito de erosão da soberania, que são as constantes exigências orçamentais e políticas da União Europeia, sobrou pouco sobre o qual um líder nacional possa de facto ter um impacto significativo. Não que o cidadão alguma vez vá ouvir estas verdades fora deste espaço. Irão explicar-lhe ponto a ponto como estamos a caminhar para um futuro melhor apesar de todos os sinais o negarem. O poder e saúde da nação, tal como Osíris, foram retalhados por aqueles que apesar de possuírem uma pretensão ilegítima ao poder conseguiram apossar-se dos mecanismos de controlo. Não sendo os detentores de direito todos os seus passos e acções espalham mais confusão e miséria, porque em última análise nunca quiseram o poder para algo que não fosse apenas a sua gratificação pessoal.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

As parcerias com o sector privado serão explicadas como essenciais, apesar dos maus exemplos do passado, pois o Estado não tem o direito de oprimir a economia de “mercado” (falta explicar em que economia de mercado existem rendas garantidas) nem possui recursos para chegar a todo o lado – convenientemente ninguém explica como é que uma organização privada que não tem as economias de escala do Estado e ainda precisa de assegurar um lucro pode alguma vez fornecer um serviço melhor ou mais barato. A elevação do poder local a algo “central para a democracia” será vendido como uma devolução de poder ao cidadão que poderá, conforme as suas necessidades locais definir a alocação de recursos – tapando a sórdida realidade que esta realocação de poderes e fundos afecta essencialmente as máquinas partidárias locais, a arraia miúda e média dos partidos, que são vitais para escolher as lideranças partidárias nacionais (e mantê-las). As exigências europeias, cada vez mais desajustadas da realidade nacional serão promovidas como essenciais para garantir acesso aos mercados, um lugar no palco internacional, credibilidade diplomática, eficácia económica… – tudo o que possa ajudar a centrar a discussão política nacional em detalhes tecnocráticos em vez de questões de fundo sobre dependência e soberania. Sai a facção A, entra a facção B. Sai a facção B, entra a facção C. E assim sucessivamente… todos repetindo ipsis verbis estes pontos. Porque as suas raízes vão todas beber ao mesmo rio poluído que é o regime actual. O caos perpetua-se na ausência de um principio ordenador originador de justiça.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

O caminho está fechado. Foi feito por aqueles que estão Mortos, e os Mortos o guardam, até chegar o momento. O caminho está fechado.

Reconhecendo este estado de coisas a Irmandade Némesis empenha-se diariamente em informar os cidadãos (membros ou não-membros) que começam a levantar o véu a esta realidade em decomposição. E em aos poucos criar um caminho de restabelecimento de ordem. É um trabalho ingrato porque as elites, mais que entranhadas, estão enquistadas na realidade social portuguesa. Dominam a produção intelectual, têm fundos disponíveis para comprar e vender a grande maioria dos cidadãos, estão representadas em todos os órgãos com poder neste país. São um polvo que nos sufoca enquanto nação. Asfixiam todos os que não se libertarem da sua dominação. Somos cavaleiros que percorrem estradas sombrias, tentando restabelecer a verdadeira ordem das coisas, sentimos o chamamento do dever e de ideais mais elevados que o mero conforto ou ganho pessoal. Mantemos viva a verdade: que as elites não são as detentoras legitimas do nosso país. Apenas se apropriaram dele de forma violenta conseguindo quase apagar a hipótese de um outro Portugal ser possível e de outra ordem de valores para a vida pública estar disponível para quem souber reconhecer a teia de mentiras que o rodeia, e aceitar o manto de responsabilidade que vem com esse conhecimento. Metaforicamente vivemos no reinado de Set mas mantemos viva a memória de Osíris e guardamos o trono de Hórus até ele o reclamar. Sustentamos o princípio da Justiça num tempo escuro.

NémesisA Irmandade de Némesis mantém a sua vigília e acolhe todos nas suas fileiras!

Autonomia e Estratégia

Como o Enclave e a Irmandade de Némesis têm vindo a demonstrar ao longo dos anos o actual debate nacional sobre o rumo a dar ao país reflecte em grande medida uma ficção. Não está de facto nada em debate. Ou dito de forma mais correcta o que está em debate por todas as forças políticas é apenas a forma e nunca a essência do sistema. E isto serve as elites de forma perfeita. Mantém as pessoas entretidas a discutir o sexo dos anjos enquanto as muralhas da cidade colapsam uma a uma. É verdade que alguns portugueses vão estando mais cépticos à medida que percebem os limites reais da nossa posição estratégica no mundo. Mas tristemente o efeito desta descoberta tende a ser a retirada do individuo da vida pública pois o cidadão desperto começa a desenvolver uma forte dissonância cognitiva face ao que o rodeia e ou é ostracizado ou acaba por se auto-exilar. As conversas que ouve e vê deixam de fazer sentido já que se entende que não têm qualquer relação com a realidade. Começa-se a ver as ilusões por aquilo que são, distracções para impedir que qualquer conversa nacional séria possa de facto existir. Começa-se a entender que os “princípios” e “ideologias” em grande medida não passam de capas retóricas com que se tapam os interesses mais cínicos de quem os defende ou na melhor das hipóteses conceitos vácuos que tentam mobilizar as massas para situações que ou são contra os seus melhores interesses ou não produzirão qualquer efeito. Tudo isto torna-se particularmente óbvio quando se discutem os modelos de desenvolvimento económico e as suas consequências políticas e sociais.

"The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers." - Zygmunt Bauman

“The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers.” – Zygmunt Bauman

As teorias económicas que estão em voga e que, teoricamente, visam optimizar os rendimentos das nações dos seus agregados empresariais insistem todas sobre um ponto, a especialização. Cada região deve focalizar-se apenas num elemento da produção de serviços ou produtos e importar o restante já que a dispersão por várias áreas não corresponderia a um óptimo económico (o máximo ganho de unidades monetárias pelo mínimo input de recursos). O corolário deste modelo é uma interdependência total dos países uns dos outros e necessariamente a fragilização de países mais pequenos e menos capazes de manter alguma diversidade de produção. Isto traduz-se em fórmulas econométricas que tentam expressar o risco associado à falha/colapso de um dos componentes deste sistema mais ou menos global. E como todas as fórmulas da economia clássica está sujeita a dois tipos de críticas: 1) O risco não se comporta de forma linear e o princípio base da económica clássica, ceteris paribus (e tudo o resto permanece igual), não tem validade, a instabilidade de um elemento toca na estabilidade todos os outros elementos e quanto maior o grau de interligação maior este efeito de contágio não intencional se torna – acaba por se tornar impossível ter uma ideia do risco real associado à maioria das falhas porque ele não respeita modelos matemáticos teóricos; 2) A interligação dos vários elementos deste sistema não divide o risco de forma equitativa, antes pelo contrário. Coloca grande pressão sobre os elementos mais pequenos que ao serem necessariamente mais especializados dependem apenas uma mão cheia de produtos ou serviços. Estão então duplamente dependentes. Dependem da manutenção de mercados externos muito específicos para escoar o seu excedente especializado e por sua vez dependem da existência da estabilidade de todos os outros mercados para assegurar a importação de todos os bens essenciais. Adicionalmente este sistema de avaliação de risco tende a ignorar que as grandes nações são indiferentes aos colapsos das pequenas nações mas que o inverso não é verdade, ou seja, a distribuição de risco não é apenas desigual como é mesmo inversamente proporcional ao poder económico e político de cada entidade nacional.

"It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence." - Voltaire

“It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence.” – Voltaire

Porque é que se seguiu este modelo de desenvolvimento? Porque a teoria alternativa caiu em desgraça. Diametralmente oposta a esta visão está a visão de autarquia – uma nação que organiza a sua vida económica no sentido de ser totalmente auto-suficiente. Há duas causas para o abandono deste modelo. Em primeiro lugar à medida que revolução industrial progredia e tecnologia se complexificava tornou-se claro que cada país não tinha a mesma distribuição de recursos naturais o que tornava a independência total como uma impossibilidade técnica. Em segundo lugar durante o século XX esta teoria de auto-suficiência extrema esteve associada a todo o conjunto de economias totalitárias (a Alemanha nazi é o caso mais óbvio) que exaltavam a nação de forna xenófoba e que viam as relações internacionais não apenas como o domínio da competição ou do conflito mas como apenas uma interminável guerra. Torna-se assim compreensível o abandono desta teoria em favor de uma que teoricamente daria lugar a menos tensões e conflitos e maximizaria os potenciais ganhos de cada nação. Mesmo os países que se sentem de alguma forma prisioneiros do sistema actual (a micro especialização) não encaram a autarquia como alternativa porque o choque de uma mudança de sistema causaria terramotos políticos, teria custos sociais elevados e seria questionável qual o nível de bem-estar que se poderia de facto proporcionar ao cidadão médio numa situação de autonomia total. Agora que o velho modelo continua descredibilizado e o novo parece estar próximo dos seus limites naturais e as suas falhas sistémicas começam a estar expostas as ansiedades populares sobre modelos de desenvolvimento credíveis e duráveis começa a aquecer já que não existe nenhuma nova ortodoxia no horizonte para substituir o que existiu até ao momento.

"For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually." - Ha-Joon Chang

“For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually.” – Ha-Joon Chang

De que adianta debater e discutir quando de facto não se quer sequer admitir os limites de cada uma destas escolhas e não se pondera a situação estratégica específica de Portugal? É útil colocar os termos do debate sobre uma forma partidária? Útil para quem? Há noção das consequências caso se queira desbravar novos caminhos? Há uma cultura de liderança política forte o suficiente para assumir esse risco? Existe vontade e coragem popular para aceitar de frente os imensos riscos quer para permanecer num modelo económico esgotado quer para explorar outras alternativas? Em última análise temos que ser extremamente cépticos quanto a qualquer possibilidade de mudança real que não provenha de um desastre exógeno, algo além do nosso controlo e iniciativa. Quer no topo quer na base a nossa sociedade tem falhas graves que nunca foram colmatadas e que nos tornam incapazes de tomar escolhas estratégicas coerentes. A Irmandade de Némesis recomenda a todos os cidadãos despertos (sejam membros ou não) cuidado em se envolverem no “debate” nacional, não nos devemos guiar por ficções e interesses alheios ao país. Só uma renovação dos valores da esfera pública pode trazer a revitalização necessária para voltarmos a ser capazes de fazer escolhas independentes e relevantes.

Cumpra o seu dever – não vote

Aproxima-se o fim de mais uma fase do ciclo eleitoral, desta vez para eleger o que poderia ser descrito como o órgão do poder político menos eficiente em existência: o poder local. Agitam-se as bandeiras cansadas e gastas de tanto uso, dizem-se as mesmas trivialidades que um público indiferente espera ouvir – sendo que o objectivo não é convencer ninguém da sinceridade das intenções ou da seriedade dos planos (essa possibilidade não é sequer uma opção) mas apenas gerar menos hostilidade espontânea que o opositor – colam-se os cartazes com algumas caras conhecidas e outras tantas que nunca vimos na vida com slogans tão banais que nem passando por eles todos os dias os conseguimos fixar. O cerimonial prossegue, vazio de significados mas com alguma pompa, respeitado até á mais ínfima minucia legal ou tradicional não vá alguém dar pela falta de algo.

"Bureaucracy is a giant mechanism operated by pygmies."

“Bureaucracy is a giant mechanism operated by pygmies.”

Se num ano normal a maior deste ballet altamente coreografado, e sem audiência, passaria em grande parte desapercebido no ano 5 do apocalipse económico quase não figura de todo nem na mente dos funcionários dos partidos (com a excepção óbvia daqueles que esperam vir a ser eleitos). Se olharmos para a curta experiência democrática portuguesa é fácil reparar como passado menos de uma década da mudança de regime o bom funcionamento das instituições “democráticas” começou a ser, lenta mas de forma inexorável, redefinido de forma a que o sucesso seja medido pelo grau de desinteresse que gera (ou na gíria burocrática: “o normal funcionamento das instituições”). Tudo para nos proteger de populistas claro. Se há algo que causa de suores nocturnos ao burocratas que gerem o sistema partidário e económico é o “populismo”. Ou como Max weber lhe teria chamado, de forma mais correcta, a autoridade carismática. Horripila-os porque sabem que num campo em que não seja permitido usar as vantagens institucionais acumuladas e os contactos organizacionais nenhum deles existiria. Outro tipo de líder muito diferente emergiria e reconfiguraria todo o funcionamento do sistema e tal, obviamente, não deve ser permitido. Esta liderança está inteiramente “ligada à máquina” em todos os sentidos da expressão.

"We are afraid of the enormity of the possible."

“We are afraid of the enormity of the possible.”

Resta-nos a nós, cidadãos, a escolha estéril dos candidatos ligados à máquina. A amiba a, b ou c. A escolha é toda nossa. Quase que se ouvem os sinos a tocar de tanto êxtase que os portugueses sentem com tanta liberdade. Dado o jogo viciado proposto a melhor opção é como sempre abstermo-nos de participar. Quando nenhum resultado positivo pode emergir o melhor é não contribuir para nenhuma das alternativas igualmente más – quem escolhe ignorar este raciocínio esquece-se que apenas estará a cooperar (com boas ou más intenções) com algo que não deseja de verdade e que em nada ajudará o seu bem-estar.

"As societies grow decadent, the language grows decadent, too. Words are used to disguise, not to illuminate, action: you liberate a city by destroying it. Words are to confuse, so that at election time people will solemnly vote against their own interests."

“As societies grow decadent, the language grows decadent, too. Words are used to disguise, not to illuminate, action: you liberate a city by destroying it. Words are to confuse, so that at election time people will solemnly vote against their own interests.”

Mas para quem não vê nada de mal com o que se passa. Quem não sente nada de errado com a forma como toda uma sociedade é encurralada. Para quem acha que retirará benefícios com a continuidade: que estas palavras sejam ignoradas e o ritual prossiga.

Irmandade de Némesis 

Pequenas perguntas

Ao longo do tempo há pequenas perguntas que começam a “incomodar” ou a ficar presas, qual pedra no sapato, na nossa mente e às quais não conseguimos dar um enquadramento lógico que nos satisfaça plenamente. Começamos a pensar sobre o tema e ao fim de alguma leitura, debate e pensamento sobre o tema começamos a ouvir uma voz interna a dizer: “porque estás a fazer isto tudo”? Quanto maior a base de conhecimento menor será o grau de integração social (não interessa tanto o nível económico – apesar de ajudar ou facilitar claro – como o sentimento interno da pessoa, se ela se sente parte do todo, se consegue uma identificação emocional com “a coisa”) e mais vezes este tipo de pergunta interna irá surgir.

“Any fool can know. The point is to understand.”

“Any fool can know. The point is to understand.”

Para mim há uma lista delas que ao longo dos anos fazem as suas rondas habituais na minha mente sem que nunca tenha conseguido obter uma resposta que me diga algo (a um nível existencial se quisermos colocar a coisa assim). E a primeira delas é o acto de votar. Eu compreendo, e sei melhor que muitos, a história do liberalismo português (no seu sentido europeu e único: autonomização do individuo face aos grupos sociais, seja a coroa, o patrão, a religião a cidade, o bairro, o clã, etc) mas depois de uma breve admiração pelos esforços que outros desenvolveram em seu (e inconscientemente) e em meu nome fica o vazio. Porque haveria de votar? Porque haveria sequer de me preocupar com as tricas internas que passam por “notícias” nos órgãos de informação comerciais e politizados? O que significa para mim que um ou outro governe (tirando casos aberrantes de ameaça de liberdades fundamentais, mas nesse caso penso que poderíamos considerar mais como situações de autodefesa eleitoral do que como um voto ponderado)? Eu não como da mão de nenhum deles por isso à partida nada ganho em qualquer apoio. Não acredito por um momento na sinceridade de nenhum deles por isso sei que são todos igualmente ocos. Já vivi o suficiente para a ver a corrupção de todos eles triunfar sobre pessoas boas ou ingénuas que nada fizeram para o merecer, por isso, porque haveria de ajudar a dar esse tipo de poder a qualquer um deles?

"Greed is a bottomless pit which exhausts the person in an endless effort to satisfy the need without ever reaching satisfaction"

“Greed is a bottomless pit which exhausts the person in an endless effort to satisfy the need without ever reaching satisfaction”

Uma das minhas grandes desilusões é não ser anarquista. Isso facilitaria imenso as coisas. Passar um selo de borracha sobre toda a teoria institucional e mandar tudo às urtigas. Mas, mais uma vez, tenho experiência pessoal suficiente para saber que o anarquismo é uma fuga do inevitável. Da natureza humana. Que anseia por hierarquia (menos pesada e menos visível é o que tem estado na moda nas últimas décadas mas, como na roupa, estas coisas são cíclicas) e por ganho pessoal. Mais que isso, apesar do misantropismo sei reconhecer que há indivíduos, aqui e ali extremamente isolados, cortados de outra cepa. Para quem uma oportunidade numa posição de organização seria uma dádiva dos deuses a todos nós – apesar simultaneamente ser obrigado a reconhecer a improbabilidade que tais indivíduos vão muito longe nas hierarquias partidárias e corporativas. Há demasiados acordos a fazer, demasiadas coisas a comprometer, demasiado que fica pelo caminho. Até que, para aquelas que decidem entrar no jogo para “mudar as coisas por dentro”, sobra apenas mais um esqueleto ético, igual aos outros que enchem os partidos, os órgãos do estado, as chefias e cargos médios das empresas. Autênticos abismos niilistas andantes. Talvez os gregos tivessem alguma razão (limitada pelo seu próprio isolamento) quando falavam de gerações decrescentes. À era o do ouro seguir-se-á a de prata e depois a de bronze (continuando a sequência até a uma degradação final e, talvez, renovação) e talvez assim entendamos porque muitos dos dignatários serão incapazes de cumprir as funções, básicas, que os seus antecessores lhes encarregaram.

"E a última é a do duro ferro. De súbito, todo o acto nefando irrompe nesta idade de metal menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a  lealdade, e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro e a traição, e as insídas e a violência,e a criminosa paixão por possuir."

“E a última é a do duro ferro. De súbito, todo o acto nefando irrompe nesta idade de metal menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a lealdade, e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro e a traição, e as insídas e a violência,e a criminosa paixão por possuir.”

Portanto fica a questão, para quem ainda se interessar não pelas pessoas, não pelos eventos mas pelas ideias: Porquê, dado tudo isto votar? Que bem ético atingimos? Que serviço cumprimos? Qual o objectivo pragmático que é servido?

Proposta de abolição constitucional

Resumindo a situação:

– Não existência de maioria parlamentar para reformar ou abolir a constituição.

– A não existência de um poder legislativo independente – verdade que não é culpa deles, já que os poderes executivos e legislativos derivam da mesma eleição.

Não existência de vontade popular no sentido de apoiar em votos a reforma ou abolição da constituição.

Proposta do PSD:

– A não existência de constituição. Que desapareça a figura do documento rígido, não sujeito de ser adaptado aos desejos de governos estrangeiros e os seus respectivos gabinetes de gestão de ocupação.

– A não existência, óbvia, de um órgão fiscalizador do documento constitucional já que dada a sua total flexibilidade não faria sentido nenhum, quando alguém diz para alterar, altera-se. Tão simples como isso.

– Em caso de dificuldade recorrer à figura do chefe de estado para ganhar alguma legitimidade para o que ser fazer.

E neste último ponto é que está a chave meus caros. Os portugueses pedem muito a intervenção do Presidente da Republica mas como, quase, sempre não sabem muito o que querem dizer com isso. O presidente é o sustentáculo moral deste governo. Foi o criador deste governo através de uma crise que ajudou a magnificar quando tal lhe foi conveniente. Foi o primeiro a propor que se abolisse ou reformasse profundamente a constituição de forma a transformá-la mais num memorando de trabalho ministerial que numa carta de direitos e garantias básicas da população portuguesa. Em última análise é o único que, fora um acordo largo no parlamento, que tem poder para significativamente alterar a aplicação da constituição. Nomeadamente através da sua suspensão se faltar qualquer outro acordo e ele, a título pessoal, o julgar necessário. Sim é verdade que estarão previstas legalmente situações muito específicas para as garantias constitucionais serem suspensas mas, como o regime já nos provou, quando algo não agrada é substituído e as regras são de aplicação inconstante. Além das razões óbvias, sem um tribunal constitucional activo (ou fragilizado por medidas governamentais e presidenciais), a existência uma maioria parlamentar fanatizada e um Conselho de Estado na sua maioria cúmplice, quem irá pedir uma análise dessa suspensão constitucional ou de forma mais interessante quem a iria executar? Portanto Portugal que grite pela intervenção do chefe de estado, que clame nas ruas para este sair da sua inacção mas depois não se esqueçam de quem ele é, do que criou e dos seus desejos de longo prazo há muito expressos.

"No freeman shall be taken, imprisoned, or in any other way destroyed, except by the lawful judgement of his peers."

“No freeman shall be taken, imprisoned, or in any other way destroyed, except by the lawful judgement of his peers.”

Mesmo em caso de “mera” substituição da constituição por outro documento o governo sabe não ter o mínimo de popularidade ou credibilidade para conseguir aprovar tal documento por via parlamentar ou por via de um plebiscito. Logo a única alternativa seria uma suspensão alargada (até a “crise” ser resolvida – lembram-me de há uns anos Manuela Ferreira leite ter falado no mesmo? Isto prova que existe uma corrente de pensamento muito presente influente dentro do partido) tendo como único “entrave” a vontade do chefe de estado. A última vez que tivemos um modelo parecido foi em 1906 pelas mãos de João Franco, outro político que fez escola nos partidos caciquistas e rotativistas da monarquia liberal mas se dizia “independente” e “reformista” e o monarca era Carlos I – que pela sua atitude de indiferença para com o país e prepotência governamental foi morto em praça pública num dos poucos regicídios da nossa história. O sistema tinha um nome, governo por decreto. O ditador (e era esse o cargo de João Franco – era uma altura que ainda se chamavam as coisas pelo nome) propunha legislação ou medidas punitivas conforme o seu gabinete achava desejável e estas eram postas sob o “rigoroso escrutínio” de um rei mais interessado na caça e na sua vida sexual que no país. No século XX a ditadura administrativa de João Franco não chegou a durar 2 anos completos mas só acabou devido à morte do homem que sustentava o regime, Carlos I. O seu filho, por medo ou manobra política, optou pelo caminho da tentativa de absorção e castração política dos movimentos dissidentes. Falhou porque claramente o abismo que separava o país católico e monárquico do país republicano e liberal já era intransponível.

Presos políticos por ordem de João Franco - mas claro, apenas até a situação estar normalizada. Mais depressa caiu a sua ditadura que ele conseguiu "normalizar" qualquer situação política, económica ou social.

Presos políticos por ordem de João Franco – mas claro, apenas até a situação estar normalizada. Mais depressa caiu a sua ditadura que ele conseguiu “normalizar” qualquer situação política, económica ou social.

Num regime como o nosso, que talvez ja tenha conseguido igualar a monarquia liberal na sua ineficiência nas relações internas (estado) e externas (estado e privados) e que talvez possua o edifício legal mais bizantino que já tivemos torna-se complicado saber onde este caminho nos poderia levar. Um governo sem qualquer documento fundador ou guia? Sustentado apenas pela sua própria vontade de poder, inépcia governativa, regado com eleições presidenciais de 5 em 5 anos e mantido o resto do tempo pela pressão constante dos “credores” que funcionariam como uma espécie de Conselho de Regência? Talvez seja este o resultado de nunca se ter feito uma verdadeira reforma política em Portugal há mais de um século. Os monárquicos “transformaram-se” em republicanos, que por sua vez se “transformaram” em Salazaristas que finalmente se “transformaram” em democratas. Todos são tudo e ninguém é verdadeiramente nada. Talvez seja isto que um país carcomido por elites monárquicas no armário se pareça. Aproximações constantes a um período idealizado sem qualquer atenção ao momento histórico, à população ou à própria decência política.

Os ares do Verão

Para que serve o Verão em Portugal? Até há uns anos (2007-2008) servia como ritual de purificação da classe média que se isolava através do turismo massificado em zonas de praia com planos urbanísticos horríveis. No entanto isso tem vindo a alterar-se. A mobilidade reduz-se a cada ano que passa e cada vez mais pessoas ficam em casa a meditar sobre o que fizeram o ano todo. A contemplar os seus erros. Sem banhos de sol e mar podem encarar mais sobriamente o que esses enganos podem implicar para o seu futuro. Será que a anunciada recuperação terá alguma continuidade depois do normal “boost” de Verão? Poder-se-ão pagar as contas de saúde que se vão acumulando à medida que as poucas unidades ainda totalmente públicas começam a perder os poucos recursos que lhes restavam? Será que haverá dinheiro para que os filhos possam continuar a estudar agora que o ensino vai seguir o caminho do SNS e será incrementalmente pago? Os abutres televisivos fazem a cacofonia do costume mas nada parece claro. E assim se perdem as noites de sono dos mais prescientes.

"O culpado que nega as suas culpas - dobra-as"

“O culpado que nega as suas culpas – dobra-as”

Os mini casos de corrupção política e pessoal ocupam as semanas e a confusão dá lugar a exigências algo vagas de “justiça” – dentro do estilo de uma populaça medieval irada: “que se tirem as maçãs podres do cesto” (que o cesto em si esteja podre é outra questão que escapa à visão de muitos). Mas a pergunta mais perceptiva é porque é que estes “escândalos” aparecem todos de seguida. Se olharmos para a normal rotatividade dos partidos penso que será fácil de perceber que esta continuação de governo não estava nos planos. Isso aumentou muito as tensões. Já em tempos normais o teria feito, mas numa altura em que os aparelhos partidários estão mais apertados a urgência é sentida como a fome de quem não vê uma sandes há uma semana. Não espaço para o cavalheirismo habitual. Não se podem deixar estas coisas passar – mesmo que seja do interesse de qualquer sistema estável que os principais agentes de poder não chamem a atenção dos governados sobre as suas falhas, especialmente quando são partilhadas, já que não só os enfraquece a ambos como ao sistema que lhes permite existir. Mas quando a fome aperta e os recursos escasseiam os cavalheiros perdem os seus bons modos e tornam-se visivelmente mais tribais, tornando todo o jogo de interesses mais transparente.

"Os traidores são colhidos na sua própria cobiça"

“Os traidores são colhidos na sua própria cobiça”

Mas a vida prossegue. Por inércia. Por incapacidade de reacção. Por apatia. Por indiferença. Por cobardia. Talvez os deputados alemães tenham alguma razão e Portugal seja um país de “mansos”. Talvez. O calor tardio finalmente faz o seu efeito e leva os portugueses mais persistentes à sonolência. Conseguem adormecer numas “siestas” que compensam as noites problemáticas. Mas Setembro está à porta e com ele mais uma movimentação nos terrenos políticos, as eleições locais. As eleições para o poder autárquico são uma mistura de clientelismo básico de século XIX, aparelhos partidários pós-25 de Abril, corrupção imobiliária e uma oportunidade geral de fazer uma sondagem de opinião sobre o poder central. Serão seguidas pela tentativa de aprovar mais um orçamento que deverá tantas hipóteses de passar quantas as câmaras que o PSD conseguir manter e do próximo relatório trimestral sobre a economia – já sem os resultados de Verão. Admito ignorância quanto ao que vai na cabeça dos nossos veraneantes. Não sei se continuam a pensar que isto se vai corrigir sozinho. Não entendo o porquê da indiferença dos mais afectados pelas reformas. Estão à espera de algum salvador? Nesse caso puxem uma cadeirinha porque pode demorar – o último devia ter aparecido pouco depois de 1580 e ainda estamos à espera.

wir kapitulation

wir kapitulation

O calor entorpece os sentidos mas a seguir ao Verão virá sempre o frio. Severo. Cruel. Realista. E aí não existirão deliciosos pedaços de tempo a meio da tarde onde as pessoas poderão diluir as suas consciências. Virão também novos Senhores do Norte. Emissários imperiais para nos impor um novo tributo sobre a dívida gerada por nós e acima de tudo por especulação financeira organizada – se existisse capacidade técnica e coragem política provavelmente chegaríamos à conclusão que estamos mais num cenário de guerra económica e de ocupação informal do que parceria. Não haverá simpatia como não houve até agora. Não haverá perdão. Não haverá alívio. Apenas um aumento da pressão até que os mestres dos publicanos estejam saciados com o saque e assegurados da incapacidade de resposta. O regime fragiliza-se internamente mas cimenta cada vez a sua credibilidade pela sua estreita ligação à nova Roma. O povo ignora por sua conta e risco o que sucede debaixo das suas barbas.

Consilio, quod respuitur, nullum subest auxilium

Dos Limites da Indignação

Depois das grandes manifestações do fim-de-semana passado os ânimos já acalmaram o suficiente para se poder olhar para as situações de forma mais fria e racional. Foi acima de tudo um êxito em duas frentes. Do lado da organização demonstrou grande capacidade de mobilização de pessoas que habitualmente seriam tudo menos socialmente activas. Do lado individual provou a muitas pessoas que o mundo não desaba por manifestarem vocalmente a sua opinião. Dito isto, torna-se também necessário admitir as limitações do que ocorreu. Não se trata de algo que necessariamente force qualquer tipo de mudança imediata. Sim o governo está frágil, mas o executivo já contava não cumprir o mandato completo (nunca contou…) e como tal isto apenas veio confirmar que o momento de se afastarem se está a aproximar. Será com isso em mente que deverão ser interpretadas as recentes movimentações face ao tema do salário mínimo. É normal, no sentido de fazer parte da tradição política portuguesa, que a partir do momento que um governo sabe que está condenado comece a tomar medidas aparentemente mais agressivas em algumas áreas. Poderia à primeira vista parecer contra-intuitivo tomar posições que exacerbem uma opinião pública já de si hostil mas isso corresponde apenas a uma análise superficial, senão vejamos. A partir do momento que uma queda se torna inevitável (mesmo que não imediata) os ministros perdem qualquer incentivo a agir de forma política pois sabem que a sua posição nessa arena é demasiado negativa para atingir seja o que for. Assim sendo viram-se para os seus objectivos pessoais (normalmente associados a empresas privadas que gostariam de ver algumas legislações menos simpáticas aprovadas) e ideológicos (já que estão condenados aprovam tudo o que de outra forma nunca se atreveriam sequer a propor). A questão da fragilidade laboral atinge ambas as esferas de todos os actuais ministros. Por um lado alguns têm interesses em empresas privadas (nas quais já trabalharam, aspiram vir a trabalhar ou esperam receber contratos) e outros têm compromissos ideológicos de longa-data com um determinado modelo socioeconómico que inclui na sua matriz uma total ausência de protecção laboral.

"Unemployment insurance is a pre-paid vacation for freeloaders." - Ronald Reagan (Ídolo mor conservador)

“Unemployment insurance is a pre-paid vacation for freeloaders.” – Ronald Reagan (Ídolo mor conservador)

Regressando às manifestações recentes. Será excessivo esperar soluções em acções que não possuem força legal ou ética suficiente para forçarem a realidade política. Legalmente convém dizer que a única possibilidade de impugnação dos actuais governantes seria por desrespeito ao espírito da constituição do regime, algo que o Tribunal Constitucional nunca os irá acusar e o Presidente da República não iria apoiar de qualquer forma – ele próprio tentou, com sucesso limitado, alterar a constituição no mesmo sentido. Eticamente a posição dos manifestantes também não é inteiramente “pura” já que de facto grande parte deles votou na coligação governativa e o prazo do mandato não se altera a meio só porque as pessoas percebem que afinal votaram contra os seus próprios interesses, que de facto deveriam ter lido o programa eleitoral e que realmente teria sido interessante olhar para o comportamento a longo-prazo dos candidatos (especialmente os seus compromissos empresariais e ideológicos de longo prazo). Tiveram hipótese de calmamente analisar as coisas e optaram por não o fazer. A surpresa só pode provir de uma ignorância auto-induzida combinada com um certo grau de indolência intelectual. Não que isto retire urgência e necessidade aos pedidos das pessoas (está muitas vezes em causa a sua sobrevivência e isso tem que ser prioritário) mas retira peso moral às suas exigências já que a sua situação deriva, em muitos casos, directamente das suas próprias escolhas. Entramos no campo de minas que é a distinção entre eleitor e cidadão que ninguém quer realmente encarar.

The Big Magic Button

Talvez o mais confrangedor desta situação seja ver as pessoas, os eleitores não-cidadãos, virarem-se, apesar de tudo, para as mesmas pessoas e instituições de sempre. Como se esperassem que essas entidades contrariassem o seu interesse próprio, quando nunca o fizeram ao longo da sua existência. “Organizações de cidadãos” dirigidas por fantoches partidários, “comentadores populares” amigos e frequentadores das mais altas esferas do poder económico desta nação (se ainda o somos), militares que são “garantia da constituição” mas que só ameaçam algo quando os seus interesses corporativos estão em causa, partidos de “alternativa”, com fome de poder, que, além de terem os mesmos vícios dos outros, não possuem qualquer projecto, entre tantos outros. A lista poderia continuar durante bastante tempo. É o regime a tentar regenerar-se, a lutar para poder manter as suas estruturas tal e qual, a bater-se pela manutenção do poder nas mãos das famílias do costume. Sejam grandes empresas, partidos, lugares do estado, organizações não-governamentais ou qualquer outra categoria, os que detêm as suas rédeas, e mesmo lugares técnicos, são um grupo privilegiado, relativamente vasto, que não irá mudar ou ceder uma vírgula por vontade própria. Por muitas manifestações que os excluídos organizem. Falta-lhes qualquer poder para alterar realidades concretas. Os excluídos terão ainda que passar por muitas desilusões até perceberem o que entra pelos olhos de qualquer observador neutro: estão totalmente sozinhos e abandonados. Sempre o estiveram.

Realidades Democráticas III

Como já todos perceberam, existe uma miríade de factores que interferem e poluem o processo, dito, democrático, tal como o conhecemos no presente. Um dos óbvios é a preponderância dos interesses económicos especulativos. Historicamente sempre foi este o caso mas no passado existia de facto uma correspondência directa e legal entre o poder económico e o poder de voto (nomeadamente requisitos censitários). No presente o sistema foi algo mais inventivo e criou uma forma mais divertida de perverter a coisa. Deixa os mercados “pronunciarem-se” através de instrumentos puramente especulativos como as bolsas de valor. E as pessoas ouvem, o que é absolutamente hilariante. Começaram mesmo a acreditar que mecanismos de especulação financeira (e nada mais é “produzido” pelas bolsas de valor – basta verificar que se o valor de acção ou obrigação fosse o real, ou seja, desprovido de efeito especulativo intencional, ninguém ganharia dinheiro; as bolsas de valores seriam apenas quadros informativos quase estáticos) são capazes de avaliar a credibilidade de um político e, de forma mais grave, têm legitimidade para o fazerem.

who are we kidding

Prova III: Os italianos não aprovaram Monti, o candidato escolhido pelas maiores empresas financeiras do planeta, e já sofrem as consequências de tal ousadia. Vendo os seus “valores” descer significativamente por avaliação dos “mercados”. E a guerra económica continuará até uma de três hipóteses se verificar. 1) A economia real italiana, como todas as outras, está tão ligada ao elemento especulativo que explode lançando o país em décadas de miséria total; 2) Os eleitores (a omissão da palavra cidadãos é intencional) fazem uma escolha de um candidato que esteja disposto a ser comprado e como tal é como se tivessem votado de “forma correcta” ou 3) Começa um processo retaliatório contra entidades que usem a especulação para interferir em fenómenos políticos.

Moral da Prova III: Não será preciso ser um génio da análise psicológica e política para perceber que a hipótese mais viável é a segunda. Os eleitores “revoltam-se” mas sabem à partida que haverá um compromisso mais tarde com os interesses especulativos que tanto criticam. A rejeição total desses interesses não é interessante para o eleitor do centro (o tal que supostamente é racional e moderado) já que implicaria mudanças demasiado profundas na sua realidade. Há demasiado medo para encarar tal hipótese. A primeira opção é mais provável que a criação de processos retaliatórios mas não por muito. Qualquer tentativa de dissociação da economia real da especulação será recebida violentamente pelo mundo financeiro e não há políticos nem partidos com fibra para isso – e diga-se à partida que não existem porque as pessoas não os querem. Querem sempre os mesmos homens “bem falantes”, sem espinha vertebral (flexíveis, como se diria na gíria político-económica) e pouco ameaçadores. Resumindo, não entidades que lhes digam que tudo está bem e lhes dê lustro ao seu ego imerecidamente inchado.

Realidades Democráticas II

Como já mencionei antes a questão da democracia como sistema dominante no Ocidente já viu melhores dias – se quisermos ser particularmente brutais na análise podemos, sem incorrer em exageros, dizer que já nem existe na maior parte dos casos, foi substituída por algo híbrido e menos interligado com o poder popular ou a vontade individual. O desfasamento entre o debate dito político, ou seja, público e que envolve pessoas que nominalmente representam partidos políticos, e a opinião pública é cada vez mais evidente. Quando a segunda é mais “vanguardista” que a primeira é sinal certo que caímos num parlamentarismo que é essencialmente fachada.

"...it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing."

“…it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing.”

Prova II – o principal partido da oposição só agora se lembrou que certas medidas são tão violadoras do pacto entre as elites e os governados que, em qualquer sistema minimamente justo, exigem que se consulte as massas sobre a sua aplicação. Não apenas a mera questão constitucional que está em voga ultimamente. Muito antes disso foi ultrapassado o nível onde a governação excedeu o seu mandato (e não apenas neste governo – apesar de necessariamente conceder que os actuais pura e simplesmente perderam qualquer noção de responsabilidade perante a população ou sequer do seu papel e dos limites que deveriam ter).

Moral da Prova II: Como sempre todo o sistema económico e político conta com a normal passividade popular para garantir que depois do estrago feito qualquer mudança que seja feita tenha o menor impacto possível. Para isso tal “mudança” deve revestir-se das formas mais tradicionais possíveis e afastar ao máximo o poder real das mãos de cada cidadão. Daí que há décadas se tente passar a ideia de que a democracia se resume a um voto periódico. Iliba as pessoas de responsabilidades que, na maior dos casos, não querem e garante que a “mudança” será para manter o rumo. Nova gerência mas com os mesmos donos.

O fascínio com os bodes expiatórios

Se há algo que caracteriza os grupos humanos (sociedades, nações, agremiações, clubes de leitura, etc) é a desresponsabilização pessoal. O facto da complexidade social ter aumentado vertiginosamente nos últimos séculos tornou todo o fenómeno mais óbvio e deixou-nos ainda menos prontos a assumir responsabilidades que no fundo achamos que dividimos com mais pessoas. Mas mesmo isso é insatisfatório, já que levado às suas últimas consequências quereria dizer que possuímos de facto responsabilidades (por muito diluídas que sejam em processos de decisão comum ou autoritários) pelas situações que nos rodeiam, pelo que nos ocorre, pelo que acontece aos outros. Isto gera um problema para a mentalidade portuguesa, que é incapaz de assumir os erros cometidos na proporção devida. Vivemos de extremos. Tal como a percepção feminina ainda alterna, na mentalidade popular, entre a virgem e a prostituta também a do cidadão comum tende a alternar entre a do “santo vivo” e o “diabo em pessoa”. Uma democracia não consegue prosperar num pântano mental destes. É impossível. Torna-se extremamente árduo enfrentar os problemas quando não se é capaz de apontar a sua fonte real ou o que é preciso mudar, mesmo que seja dentro de nós, para os corrigir.

Anjos e Demónios?

Anjos e Demónios?

Daí o nosso fascínio nacional com a figura do bode expiatório. Alguém que, independentemente de ser um santo ou um demónio, é forçado a aceitar responsabilidades maiores do que aquelas que lhe cabem realmente. Sim o político é corrupto, nepotista ou incompetente (entre outras coisas) mas quando a população não penaliza eleitoralmente tais comportamentos onde fica a admissão de fraca ética pública por parte da cidadania? O sistema judicial pode não funcionar e estar viciado mas, mais uma vez, onde está a sociedade civil a indignar-se e a agir de forma a penalizar os agentes que a controlam? A necessidade desse alguém que seja transformado num “devorador de pecados” tem um fundo de narcisismo profundo porque rejeita a responsabilidade pessoal e colectiva dos cidadãos naquilo que lhes ocorre. É uma afirmação de que o corpo social é “puro” e que se o purgarmos de alguns elementos maus tudo voltará ao normal. É gritar aos quatro ventos a nossa inocência pessoal. Podemos não ter prestado atenção durante quarenta anos ao que se passava na economia. Mas somos inocentes. Podemos ter continuado a votar sem o mínimo de exigências éticas. Mas somos inocentes. Podemos ter abandonado os nossos concidadãos à sua sorte quando os vimos serem devorados por um sistema económico e social perverso. Mas somos inocentes.

"Purificando" o corpo social.

“Purificando” o corpo social.

O egocentrismo de tal posição torna-se ainda mais gritante quando o pânico se junta à mistura. Quando o inevitável peso de tanta “inocência” começa a afundar uma sociedade complexa começam os pedidos de “justiça” histéricos. Mas não é justiça que verdadeiramente querem. A punição de quem falhou, de quem violou a lei, de quem teve uma ética pública duvidosa é secundária e completamente insuficiente para cumprir o verdadeiro objectivo das “massas inocentes”. O que realmente procuram é a absolvição. A afirmação social que todos os males emanaram daqueles condenados e que todos os outros estão livres de qualquer mácula. A conclusão deste triste ciclo (repetido tantas, tantas, tantas vezes) é a perda do conceito de justiça. Seja ela inflexível ou tolerante tal ideia não tem lugar neste universo mental. E talvez seja essa a verdadeira tragédia. Que a única coisa requerida para apaziguar as consciências seja o sangue de meia dúzia de “pecadores”, caídos dos seus pedestais – aqueles cuja posição permanece intacta continuarão a ser adorados como deuses vivos. Que na pressa, no calor do momento, de se criarem as “listas de proscritos” para afixar no fórum se falhe mesmo em punir toda a culpa, em admitir todas as falhas. Os casos mais gritantes serão talvez eliminados mas as raízes que os permitiram jamais serão arrancadas. Serão as sementes da próxima geração de perversidades que permanecerão intactas enquanto a nossa obsessão for apenas queimar bodes expiatórios na praça pública.

“Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazer”César Marco Aurélio Antonino Augusto.

Ainda não é o fim do ciclo

A vida política portuguesa tem ciclos bastante bem definidos. Para quem conheça um pouco o funcionamento da “coisa” não será surpreendente ler que nenhum partido ganha eleições. São os governos e os ministros que caem de podre. É do traço psicológico nacional ficar agarrado à cadeira até se cair dela (provavelmente numa imitação metafórica inconsciente do ditador que nos governou quatro décadas) – a excepção sendo os que vão com missão económica definida, ou seja, já entram para um governo com missão incumbida por um grupo económico “patrocinador”; nesses casos tendem a sair assim conseguiram cumprir aquilo para que foram “contratados”.

Cuidado com o "reformismo"....

Cuidado com o “reformismo”….

Apesar dos ameaços que temos visto nos últimos dias o ciclo presente ainda não chegou ao fim. Por muito que custe admitir a quase todos nós estes senhores, com a sua falsa tecnocracia, ainda têm alguma margem de manobra junto de uma população algo inculta e deslumbrada com a “técnica” (ou a aparência dela) e com os altos cargos de outros órgãos do país – esqueceram-se todos que preservámos uma grande parte do antigo regime e que essas pessoas têm preferências claras que não coincidem com as do cidadão vulgar. Já para não falar da carta da “estabilidade” que podem sempre acenar para manter a parte mais tíbia do eleitorado temerosa… “não podemos sair senão seria o caos, não podemos mudar de plano senão os mercados devorar-nos-iam”. Parece patético mas funcionou na Grécia – não que tenha qualquer preferência especial pela Syriza mas a verdade é que fariam melhor serviço que quem lá está agora (pelo menos tenho a certeza que não abafariam os crimes económicos de uma elite).

Repetir sistematicamente a mesma acção e esperar resultados diferentes é a definição de loucura.

Repetir sistematicamente a mesma acção e esperar resultados diferentes é a definição de loucura.

Ainda há acrescentar que há coisas planeadas vitais, para a ideologia de quem os controla, que ainda estão na calha. A redução, ainda maior, do rendimento disponível médio. A redução da protecção laboral. E acima de tudo as sagradas privatizações que restaurarão milagrosamente a boa saúde económica do país. Se estivesse particularmente mal disposto diria ainda que o principal partido da oposição joga apenas um bluff. Que a última coisa que quer é assumir o poder nestas condições. Caso tal venha a suceder, num futuro a médio prazo, não se percebe o entusiasmo de alguns sectores populares já que os compromissos assumidos foram os mesmos que o actual governo. A forma de governar anterior foi a mesma (menos extremada é verdade mas de efeitos de longo prazo iguais). Portanto para todos os que já gritam “mudança”, lembrem-se da diferença entre forma e essência e preparem-se para um 2013 economicamente ruinoso, socialmente restaurador de 1973 e moralmente falido. Boas entradas.