Autonomia e Estratégia

Como o Enclave e a Irmandade de Némesis têm vindo a demonstrar ao longo dos anos o actual debate nacional sobre o rumo a dar ao país reflecte em grande medida uma ficção. Não está de facto nada em debate. Ou dito de forma mais correcta o que está em debate por todas as forças políticas é apenas a forma e nunca a essência do sistema. E isto serve as elites de forma perfeita. Mantém as pessoas entretidas a discutir o sexo dos anjos enquanto as muralhas da cidade colapsam uma a uma. É verdade que alguns portugueses vão estando mais cépticos à medida que percebem os limites reais da nossa posição estratégica no mundo. Mas tristemente o efeito desta descoberta tende a ser a retirada do individuo da vida pública pois o cidadão desperto começa a desenvolver uma forte dissonância cognitiva face ao que o rodeia e ou é ostracizado ou acaba por se auto-exilar. As conversas que ouve e vê deixam de fazer sentido já que se entende que não têm qualquer relação com a realidade. Começa-se a ver as ilusões por aquilo que são, distracções para impedir que qualquer conversa nacional séria possa de facto existir. Começa-se a entender que os “princípios” e “ideologias” em grande medida não passam de capas retóricas com que se tapam os interesses mais cínicos de quem os defende ou na melhor das hipóteses conceitos vácuos que tentam mobilizar as massas para situações que ou são contra os seus melhores interesses ou não produzirão qualquer efeito. Tudo isto torna-se particularmente óbvio quando se discutem os modelos de desenvolvimento económico e as suas consequências políticas e sociais.

"The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers." - Zygmunt Bauman

“The rationality of the ruled is always the weapon of the rulers.” – Zygmunt Bauman

As teorias económicas que estão em voga e que, teoricamente, visam optimizar os rendimentos das nações dos seus agregados empresariais insistem todas sobre um ponto, a especialização. Cada região deve focalizar-se apenas num elemento da produção de serviços ou produtos e importar o restante já que a dispersão por várias áreas não corresponderia a um óptimo económico (o máximo ganho de unidades monetárias pelo mínimo input de recursos). O corolário deste modelo é uma interdependência total dos países uns dos outros e necessariamente a fragilização de países mais pequenos e menos capazes de manter alguma diversidade de produção. Isto traduz-se em fórmulas econométricas que tentam expressar o risco associado à falha/colapso de um dos componentes deste sistema mais ou menos global. E como todas as fórmulas da economia clássica está sujeita a dois tipos de críticas: 1) O risco não se comporta de forma linear e o princípio base da económica clássica, ceteris paribus (e tudo o resto permanece igual), não tem validade, a instabilidade de um elemento toca na estabilidade todos os outros elementos e quanto maior o grau de interligação maior este efeito de contágio não intencional se torna – acaba por se tornar impossível ter uma ideia do risco real associado à maioria das falhas porque ele não respeita modelos matemáticos teóricos; 2) A interligação dos vários elementos deste sistema não divide o risco de forma equitativa, antes pelo contrário. Coloca grande pressão sobre os elementos mais pequenos que ao serem necessariamente mais especializados dependem apenas uma mão cheia de produtos ou serviços. Estão então duplamente dependentes. Dependem da manutenção de mercados externos muito específicos para escoar o seu excedente especializado e por sua vez dependem da existência da estabilidade de todos os outros mercados para assegurar a importação de todos os bens essenciais. Adicionalmente este sistema de avaliação de risco tende a ignorar que as grandes nações são indiferentes aos colapsos das pequenas nações mas que o inverso não é verdade, ou seja, a distribuição de risco não é apenas desigual como é mesmo inversamente proporcional ao poder económico e político de cada entidade nacional.

"It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence." - Voltaire

“It is not inequality which is the real misfortune, it is dependence.” – Voltaire

Porque é que se seguiu este modelo de desenvolvimento? Porque a teoria alternativa caiu em desgraça. Diametralmente oposta a esta visão está a visão de autarquia – uma nação que organiza a sua vida económica no sentido de ser totalmente auto-suficiente. Há duas causas para o abandono deste modelo. Em primeiro lugar à medida que revolução industrial progredia e tecnologia se complexificava tornou-se claro que cada país não tinha a mesma distribuição de recursos naturais o que tornava a independência total como uma impossibilidade técnica. Em segundo lugar durante o século XX esta teoria de auto-suficiência extrema esteve associada a todo o conjunto de economias totalitárias (a Alemanha nazi é o caso mais óbvio) que exaltavam a nação de forna xenófoba e que viam as relações internacionais não apenas como o domínio da competição ou do conflito mas como apenas uma interminável guerra. Torna-se assim compreensível o abandono desta teoria em favor de uma que teoricamente daria lugar a menos tensões e conflitos e maximizaria os potenciais ganhos de cada nação. Mesmo os países que se sentem de alguma forma prisioneiros do sistema actual (a micro especialização) não encaram a autarquia como alternativa porque o choque de uma mudança de sistema causaria terramotos políticos, teria custos sociais elevados e seria questionável qual o nível de bem-estar que se poderia de facto proporcionar ao cidadão médio numa situação de autonomia total. Agora que o velho modelo continua descredibilizado e o novo parece estar próximo dos seus limites naturais e as suas falhas sistémicas começam a estar expostas as ansiedades populares sobre modelos de desenvolvimento credíveis e duráveis começa a aquecer já que não existe nenhuma nova ortodoxia no horizonte para substituir o que existiu até ao momento.

"For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually." - Ha-Joon Chang

“For developing countries, free trade has rarely been a matter of choice; it was often an imposition from outside, sometimes even through military power. Most of them did very poorly under free trade; they did much better when they used protection and subsidies. The best-performing economies have been those that opened up their economies selectively and gradually.” – Ha-Joon Chang

De que adianta debater e discutir quando de facto não se quer sequer admitir os limites de cada uma destas escolhas e não se pondera a situação estratégica específica de Portugal? É útil colocar os termos do debate sobre uma forma partidária? Útil para quem? Há noção das consequências caso se queira desbravar novos caminhos? Há uma cultura de liderança política forte o suficiente para assumir esse risco? Existe vontade e coragem popular para aceitar de frente os imensos riscos quer para permanecer num modelo económico esgotado quer para explorar outras alternativas? Em última análise temos que ser extremamente cépticos quanto a qualquer possibilidade de mudança real que não provenha de um desastre exógeno, algo além do nosso controlo e iniciativa. Quer no topo quer na base a nossa sociedade tem falhas graves que nunca foram colmatadas e que nos tornam incapazes de tomar escolhas estratégicas coerentes. A Irmandade de Némesis recomenda a todos os cidadãos despertos (sejam membros ou não) cuidado em se envolverem no “debate” nacional, não nos devemos guiar por ficções e interesses alheios ao país. Só uma renovação dos valores da esfera pública pode trazer a revitalização necessária para voltarmos a ser capazes de fazer escolhas independentes e relevantes.

O programa eleitoral de todos: Regionalizar

Se há medida que as tribos da direita e da esquerda concordam é que a solução para os males do nosso país é regionalizar tudo que é organismo público. A desagregação do poder político traria de forma mágica ordem, paz e prosperidade a uma situação caótica. Já houve referendo sobre a matéria (não vinculativo) e a resposta dos eleitores foi “não”. Mesmo que apenas de forma instintiva e não sistemática os portugueses intuíram, correctamente, que havia algo de fundamentalmente errado com a fragilização do estado e dos seus, já escassos, poderes organizacionais. Pareceu-lhes estranho que o poder local fosse glorificado e recompensado quando é precisamente o ramo do poder democrático que menos sucesso teve desde a sua implementação. Sendo ainda mais brutais as duas situações de regionalização que tivemos, a municipalização e as regiões autónomas, representam os maiores fiascos democráticos desde o 25 de Abril. A municipalização não trouxe qualquer desenvolvimento ao país, não criou qualquer proximidade real ao cidadão, não impediu que a corrupção florescesse, não dinamizou o interior, em suma, não alterou uma vírgula às dinâmicas económicas e sociais que já estavam presentes em cada município. Serviu, e serve, apenas para criar cargos partidários intermédios e institucionalizar de forma democrática os caciques que governam as várias localidades desde pelo menos o século XIX. Quanto à regionalização a realidade quotidiana fala por si, as duas regiões autónomas são perpetuamente deficitárias, com elevadíssimos (até pelo standard português) níveis de disparidade de rendimentos sendo que a Madeira em particular conheceu um ligeiro boom devido às suas actividades como zona franca (sem que esse dinheiro que passou pelas ilhas tenha trazido qualquer beneficio ao cidadão médio da região).

"O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. " - José Ortega y Gasset

“O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. ” – José Ortega y Gasset

É neste contexto que os movimentos políticos tribais voltam a insistir na regionalização como relíquia sagrada da recuperação nacional. Percebendo há muito que os portugueses, apesar de serem inconsequentes, não são totalmente cegos e que não apoiariam qualquer formalização de transferência de poder para as regiões (muito menos a criação de todo um serviço público regional cravejado de nomeados políticos) as tribos de esquerda e direita apostam agora numa transferência não oficial e gradual, no fundo querem fazer a coisa lentamente, pela calada, para no fim apresentar a regionalização como um dado adquirido que já não é possível alterar – levando a uma formalização política depois dos factos. Todo o regime concorda, porque todos os componentes do regime apreciam a criação de cargos partidários e gostariam de ter mão livre nos seus “feudos ancestrais”. A retórica usada para atingir este fim tem sido essencialmente a dos serviços de proximidade e da “responsabilização” do cidadão a nível local. Claro que isto é falacioso já que o poder não está a ser devolvido ao cidadão, está a ser entregue às máquinas partidárias locais. Mas além do ganho imediato há razões mais profundas para este consenso informal do regime quanto à necessidade de dissolver ao máximo o estado central:

– As estruturas municipais ou regionais (se forem criadas) têm muito menos capacidade de resistir a pressões de grandes empresas, ou seja, o que hoje é negociado pelo estado central pode passar a ser negociado por um presidente de junta que terá um espaço de manobra inexistente quando confrontado com o poder económico.

– As oportunidades de corrupção multiplicar-se-ão já que as decisões passarão a estar dependentes não de uma autoridade central que é visível e é responsabilizada mas sim de múltiplas autoridades locais fragilizadas e sem vontade de antagonizar seja quem for.

– As privatizações que o estado central ainda não teve coragem de fazer serão agora efectuadas informalmente por autoridades locais que alegarão que não têm nem recursos nem vontade de se encarregarem directamente das suas novas responsabilidades.

– Ao colocar-se numa posição de observador o Estado está de facto a encorajar a experimentação social na sua própria população já que esquemas que seriam considerados arriscados ou pouco éticos poderão dentro de um modelo regional ser testados numa escala mais pequena sem que a maior parte do país sequer se aperceba do que se está a passar.

– As críticas que ainda se podem ouvir às medidas políticas mais absurdas serão silenciadas num sistema regional já que localmente as redes de dependência são muito mais fortes e os castigos muito mais pesados e rápidos – não é por acaso que as pequenas localidades são exemplos perfeitos de unanimismo, não há espaço social para contestar.

– Ao anular grande parte dos poderes de um estado central a Bruxelas consegue submeter ainda mais Portugal já que para muitos projectos passará a lidar directamente com autoridades regionais. Podemos chegar a uma situação em que caso exista oposição a máquina burocrática da UE pode utilizar regiões autónomas umas contra as outras.

"O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele." - Pierre Choderlos de Laclos

“O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele.” – Pierre Choderlos de Laclos

Por tudo isto não podemos ter dúvidas que seja quem for que assuma o poder nos próximos tempos o programa de medidas a médio prazo será o mesmo: medidas de proximidade, ou seja, uma regionalização encapotada que visa aprofundar o grau de feudalização da sociedade portuguesa. Enquanto as tribos da esquerda e da direita entretêm o país com danças guerreiras coreografadas e competições poéticas sobre quem é mais puro nas suas intenções o grosso das suas intenções reais passa ao lado do cidadão médio. Embevecido com o entretenimento e anodinamente seguro nas suas lealdades sectárias não lhe ocorre começar a ligar os vários silêncios estratégicos para criar uma imagem mais clara do que realmente se vai passar – convém lembrar aos leitores mais distraídos que em Portugal o que não é dito é sempre mais importante e revelador do que aquilo que é dito. Seja quem for que ganhe o próximo concurso de popularidade a resposta será essencialmente a mesma: devolver Portugal ao estado de caciquismo puro e duro.

"As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material." - John Galbraith

“As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material.” – John Galbraith

O anseio de mudança que grande parte dos portugueses sente será explorado implacavelmente criando ilusões sobre o que será realmente feito e com que objectivos. Os que se consideram mais “informados” serão ironicamente os mais manipulados e enganados pois acreditam que a mudança de linguagem e o falso protesto vão surtir efeito sobre uma elite que é inamovível. Acreditam piamente que as suas puras intenções, expressas de uma forma moderada e inepta típica da classe média (apesar de muitos destes cidadãos já não estarem nos escalões de rendimento correspondentes a uma classe média), serão respeitadas uma vez acabado o show eleitoral, esquecendo-se que o substrato dos seus projectos “alternativos” é controlado por pessoas que estão perfeitamente integradas nas nossas elites nacionais e cujas pretensões ideológicas de “radicalidade” não passam de uma afectação estética. Quando os dados estiverem lançados acabarão por tomar as mesmas decisões que todos os outros que os precederam porque no fundo não ambicionam qualquer rotura com o regime. A miragem de uma retoma económica eminente combinada com um desejo profundo de uma resolução mágica que não envolva qualquer acção pessoal combinam-se para criar a próxima desilusão.

As sombras mudam de posição

O Verão costuma ser morto e este ano não foi excepção. Aproveitou-se o vazio noticioso para ir introduzindo temas relevantes que não tiveram de todo a atenção detalhada que mereciam. Foram apenas benevolamente comentados pelos suspeitos do costume que tudo fazem para mostrar a inevitabilidade e normalidade de falências bancárias, manobras de bastidores partidárias, estranhas relações entre público e privado e infindáveis cortes no nível de vida do cidadão. Haverá aqui algo de novo que mereça comentário? Vamos dar alguns passos atrás, para ganhar alguma distância crítica, e vamos dissecar a situação estratégica sem a distracção dos faits divers. O leitor será o juiz sobre o que realmente se passa com o seu país.

Alexander Litovchenko - Charon Carries Souls Across the River Styx

“É preciso dizer a verdade apenas a quem está disposto a ouvi-la” – Séneca

As falhas estratégicas da elite de poder não precisam de mais estudos aprofundados por parte de grandes académicos, porque, como em tudo na vida, a prova está sempre nos factos empíricos. E os factos são os seguintes: Portugal saiu de uma rota de convergência social e económica com o resto da União Europeia há pelo menos duas décadas; As instituições públicas e privadas são feudos (no verdadeiro sentido medieval da palavra) geridas com punho de ferro mas também com total inépcia por membros da elite ou do seu “secretariado” (vulgarmente designados de “gestores”); O mérito é uma palavra oca, não se traduz em qualquer recompensa no mundo real ao contrário do que os meios de comunicação fiéis ao regime querem fazer transparecer (no entanto o número de falências de empresários recentes – ou seja, pessoas que acreditaram no discurso oficial e colocaram a sua vida em jogo num qualquer investimento – não é sequer mencionada ou contabilizada); O empobrecimento generalizado há mais de uma década que deixou de ser um fenómeno ocasional ou temporário para se tornar sistemático e irrevogável; O sistema de troca de favores entre um circuito fechado de amigos e conhecidos foi, é e parece que continuará a ser a norma de funcionamento para obter seja o que for, falemos de “alta política”, uma empresa internacionalizada ou de uma junta de freguesia perdida no Portugal profundo. Estes são os factos. Não mudaram. O país é este. E como muitas famílias estão a descobrir, à medida que os seus rebentos acabam os seus estudos ou são obrigados a abandoná-los por incapacidade financeira, o elevador social está fechado para reparações por período e indeterminado.

“Num país bem governado a pobreza é algo que deve causar vergonha; num país mal governado a riqueza é algo que deve causar vergonha.” – Confúcio

“Num país bem governado a pobreza é algo que deve causar vergonha; num país mal governado a riqueza é algo que deve causar vergonha.” – Confúcio

Mas talvez haja algo a dizer. Alguns dos demagogos mais proeminentes ao serviço da elite de poder têm recentemente saído da sombra para voltar a comentar aqui e ali certos detalhes do que vai acontecendo. Parte do que este blogue e a Irmandade de Némesis andaram a dizer parece que se tornou óbvio para estes senhores – a solução prescrita não é a mesma mas falaremos disso mais á frente. Parecerá com certeza estranho a qualquer pessoa que comentadores profundamente integrados neste sistema tenham ganho uma consciência, compaixão ou empatia nos últimos meses. Obviamente que não se trata de qualquer sentimento de culpa ou de responsabilidade para com a população que atraiçoaram, por bem menos que as tradicionais trinta moedas de prata. A estratégia da elite parece estar em mudança. Devido em grande parte à sua incompetência crónica (e dado que se trata de um grupo praticamente endogâmico penso que não seria ir muito longe dizer que é genética) para gerir os seus próprios interesses a elite de poder criou um pequeno inferno neste país. Mas claro que nunca nenhum destes senhores feudais pensou que isto afectasse os seus próprios protegidos/afilhados/família ou que de forma alguma pudesse vir a ameaçar a sua predominância social ou mesmo, em alguns casos, sobrevivência. Esqueceram-se do resto do mundo. A sua visão tipicamente provinciana e saloia é de tal forma estreita que ignorou que eles não são os únicos protagonistas na política e economia mundial. Não passam de actores secundários, muitas vezes nem isso, e que os seus insignificantes objectivos e ambições são facilmente aniquilados por outras elites mais dinâmicas, competentes e com maior poder. Esta desvantagem intelectual é algo que não conseguem resolver sozinhos. Nem estão dispostos a deixar que alguém interfira no assunto. Antes de permitirem que alguém partilhe o leme do barco preferem que vá ao fundo. Como irónica e perspicazmente Napoleão terá comentado com o seu ministro dos negócios estrangeiros, Talleyrand, acerca da dinastia dos Bourbon: esta elite nada esquece e nada aprende. Por muitas viagens que façam a Londres, por muitos MBAs que tirem, por muitas compras que façam na Place Vendôme, por muitos brinquedos tecnológicos americanos que acumulem ou por muito que se tentem tapar com a última moda de Milão não conseguirão jamais deixar de ser o que sempre foram: merceeiros mesquinhos a quem falta qualquer tipo de visão estratégica quer para si quer para os que dominam através de coerção e medo.

“O rico comete uma injustiça e ainda se mostra altivo; o pobre é injustiçado e ainda precisa de se desculpar.” – Eclesiástico 13:3

“O rico comete uma injustiça e ainda se mostra altivo; o pobre é injustiçado e ainda precisa de se desculpar.” – Eclesiástico 13:3

Colocados em cheque na sua própria casa a elite de poder teve que começar um processo de reposicionamento dos seus peões. Confrontados com uma situação que começa rapidamente a fugir ao seu débil controlo começam a abandonar alguns dos seus aliados políticos tradicionais. Não deixarão de fazer os habituais negócios de renda garantida com o Estado ou colocar os rapazes das várias cores políticas como seus assessores e gestores, mas gradualmente deixarão a classe política assumir cada vez mais o peso moral das monstruosidades que vão fazendo. Dão instruções para que os seus agentes tomem posições algo mais críticas em relação aos erros de governação que entram pelos olhos dentro e que são impossíveis de vender à população como algo que não seja uma imposição hierárquica caprichosa. Em suma, estão a distanciar-se tacitamente. Assumem pela primeira vez, desde o seu regresso do exílio a que foram remetidos em 1974, que talvez o regime democrático, tal como o conhecemos, não sobreviva e querem estar numa posição mais cómoda para negociar com o que vier a seguir. A forma como a questão está a começar a ser posta perante a população é clássica. Escolher entre dois cenários convenientes e apresenta-los como as únicas alternativas viáveis, sabendo de antemão que ambos servirão de forma adequada os seus interesses.

“A ferramenta básica para a manipulação da realidade é a manipulação das palavras. Se se conseguir controlar o significado das palavras consegue-se controlar as pessoas que são obrigadas a usar as palavras” – Philip K. Dick

“A ferramenta básica para a manipulação da realidade é a manipulação das palavras. Se se conseguir controlar o significado das palavras consegue-se controlar as pessoas que são obrigadas a usar as palavras” – Philip K. Dick

O cenário preferível é o que vivemos já actualmente e aposta acima de tudo num certo grau de continuação da passividade popular. Manifestação à porta do ministério A, protesto junto à Câmara Municipal B, greve na empresa C, etc. Tudo somado dá em nada. Prossegue o processo de transformação de Portugal num país de terceiro mundo dentro da União Europeia que presta tributo (uso a expressão literalmente) a Berlim sobre a forma de um juro perpétuo de uma dívida que nunca poderá ser saldada através das instituições Europeias e bancárias. O segundo cenário é algo mais complicado mas ainda assim desejável do ponto de vista da elite de poder. Trata-se de deixar que o regime se consuma a si mesmo. Sem nunca se colocar como uma oposição clara mas permitindo que a classe política leve as coisas até ao ponto de rotura. Nesse momento será apresentado o seu homem providencial que implorará em lágrimas que o deixemos impor ordem na casa, a bem da nação – de forma generosa, exigirá apenas a nossa abdicação dos poucos direitos e liberdades de que ainda dispomos. O risco neste caso é fácil de entender. Qualquer regime que entre em fase terminal perde o controlo sobre os seus próprios meios e é complicado conseguir prever quem sairá vencedor de qualquer conflito que deste género. Há uma possibilidade séria de o resultado não ser o desejado. Mas tal possibilidade pode ser contrabalançada. A nível interno com o apoio dos meios de comunicação leais aos seus empregadores e com doses generosas de financiamento que outros pretendentes menos cooperantes não irão dispor. E a nível externo não é segredo que a UE segrega do seu centro uma certa dose de “racismo” cultural face aos estados do Sul e que do seu ponto de vista um regime “musculado” pode ser visto como mal menor para lidar com os “bárbaros” e “irresponsáveis” desde que não afecte os seus planos a longo termo ou equilíbrios regionais. Seja qual for a escolha “livre” dos portugueses o que será inaceitável para a elite (e como tal nem é colocado como hipótese) é que a população se autonomize face aos seus interesses, que os senhores feudais sejam expulsos dos seus castelos.

“Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal.” – Maquiavel

“Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal.” – Maquiavel

Os testes iniciais de aceitação destes cenários já começaram há muito tempo. As reacções iniciais foram extremamente negativas junto do público geral, daí o seu adiamento até este momento. Mas o tempo e a pobreza desgastam e tornam o que não seria contemplável em algo possível e eventualmente em algo que seja visto como um mal menor ou mesmo necessário. O tempo de cenários hipotéticos acabou. As hipóteses já foram postas em cima da mesa em muitos círculos e já começam a ter a sua fase inicial de divulgação às massas em forma de pensamento coerente. É um processo em marcha. O tempo e o serviço dos mercenários intelectuais irá cristalizar e tentar enobrecer estas tácticas de perpetuação de dominação. Caberá, como sempre coube, aos cidadãos saberem resistir, defender-se e reconquistar o que é deles por direito. São os cidadãos que têm que gritar com convicção “Roma não paga a traidores!”.

O Enclave está com os cidadãos.

A Irmandade de Némesis está com os cidadãos

El Dorado de latão

As recentes questiúnculas com Angola trazem sempre à memória o passado português. Aquela tendência autodestrutiva de não resolver os problemas que se têm em casa e procurar uma fuga noutro local qualquer. De certa forma esta atitude tem o seu equivalente no Sebastianismo, a procura de um imaginário miraculoso e salvífico que oculta uma falta de vontade ou incapacidade de lidar com o presente. Começámos pela Índia não tendo sabido manter o Império Oriental verdadeiramente lucrativo por mais que umas décadas – período durante o qual reinou uma autêntica guerra pirática de todos contra todos nas possessões portuguesas. Quando as coisas não funcionaram tão bem como tínhamos pensado transferimos as nossas aspirações mais profundas para o Brasil. Rapidamente também as riquezas fáceis chegaram ao fim e iniciou-se a economia esclavagista que dominaria até meados do século XIX. A revolução industrial apanhou-nos desprevenidos, como de costume, e as poucas oportunidades de acompanhar o resto da Europa foram desperdiçadas levianamente. Não será de admirar que tenhamos perdido o país para os ingleses antes de ele próprio se ter declarado independente. Em desespero de causa e sem ter para onde mais olhar lentamente começámos a interessar-nos pelas possessões africanas sendo que só no século XX é que chegámos a uma exploração verdadeiramente sistemática de uma parte significativa desses territórios. Como a metrópole nunca esteve em ordem aconteceu o mesmo que em outros momentos históricos. Uma transição atabalhoada que levou à perda de décadas de acumulação de capital próprio. Esta falta de vontade de olhar para nós próprios levou também à falta de análise crítica (política e não académica) da ditadura, das causas da sua durabilidade e do colaboracionismo de grande parte da sociedade – a hipervalorização de Abril faz lembrar um pouco a Itália pré-1945 em que se estimava existirem cerca de 500 guerrilheiros/resistentes ao regime fascista; poucos meses após retirada final da Wehrmacht o número de italianos que reclamavam ter feito parte da resistência já tinha atingido os 5000.

S. Francisco Xavier despedindo-se de D. João III antes da viagem para a Índia. Quatro anos depois escreveria ao monarca a implorar o establecimento da Inquisição no Oriente devido ao caos que encontrou.

S. Francisco Xavier despedindo-se de D. João III antes da viagem para a Índia. Quatro anos depois escreveria ao monarca a implorar o establecimento da Inquisição no Oriente devido ao caos que encontrou.

Sem análise política digna desse nome o povo seguiu alegremente o novo curso que lhe propuseram, a coesão com a Europa – numa altura que a fragilidade económica do continente já tinha feito algumas aparições. Mais uma viagem rumo a uma realidade desconhecida que parecia tão mais atractiva que a nossa. Com o benefício acrescido de podermos fugir de qualquer tendência mais introspectiva que nos forçasse realmente a lidar com os nossos “demónios” colectivos. Passou-se uma camada de verniz sobre o passado recente e sobre a própria realidade mental portuguesa e anunciou-se com pompa e circunstância que tínhamos integrado o mundo desenvolvido – só mesmo em indicadores do nível de asfalto por área territorial é que poderíamos aspirar ter atingido tal objectivo. Como todos agora sabemos as crises que já tinham abalado o sistema económico e social Europeu só se agravaram com o passar do tempo; penalizando cada vez mais os países menos unidos, culturalmente mais conservadores, de sistemas políticos recentemente forjados e sem pensamento estratégico. Mais uma aventura que provou que no curto prazo os portugueses são fantásticos a aproveitar as oportunidades de ganhos rápidos mas que lhes falta a dimensão estratégica que permitiria, senão um domínio de certas áreas, pelo menos atingir uma certa estabilidade e independência face ao exterior. Neste ponto da narrativa será escusado dizer que nos recusámos mais uma vez a olhar para dentro, para o que teríamos que resolver internamente e passámos à caça frenética da próxima “grande oportunidade”, e assim chegamos ao oásis angolano. Vedado a, quase, todos nas primeiras décadas que se seguiram à independência por uma brutal guerra civil e ressentimento acumulado e votado ao esquecimento nos primeiros anos de paz enquanto andávamos entretidos a brincar com a Europa. Mas finalmente tínhamos descoberto o nosso mundo de oportunidades perdidas numa ex-colónia sequiosa de desenvolvimento.

“Your visions will become clear only when you can look into your own heart. Who looks outside, dreams; who looks inside, awakes.” - Carl Gustav Jung

“Your visions will become clear only when you can look into your own heart. Who looks outside, dreams; who looks inside, awakes.” – Carl Gustav Jung

Mas por debaixo desta narrativa tradicional da descoberta do novo “el dorado” estava a mesma realidade de sempre. Um país que não resolveu os seus problemas internos, que não evoluiu mentalmente e que se centra sobre ganhos a curto-prazo. Esquecemo-nos do óbvio. De um ponto de vista estritamente económico Portugal não é nada e apanha as migalhas que outros gigantes deixam cair estando condenado a ser eventualmente afastado dos mercados mais lucrativos de Angola. Mais que isso, o nosso desenvolvimento técnico é recente, limitado a certas áreas e não estamos na linha da frente da investigação. Ou seja, rapidamente Angola pode prescindir dos serviços das empresas portuguesas assim que tiver as estruturas básicas montadas. Na melhor das hipóteses estamos a olhar para 10 anos de relações lucrativas seguindo-se um período de decrescimento da presença nacional até aos níveis anteriores e de uma inversão natural do peso económico respectivo, visto não termos qualquer barreira comercial digna desse nome com os PALOP (nem mesmo baseadas em correlações com o desenvolvimento humano, crescimento da classe média local, direitos humanos, etc). Mais uma vez o teatro do imediato toma prioridade e as pessoas tomam posição face a uma suposta agressividade Angolana (tomando algumas respostas laivos do regime que colonizou o país) quando de facto o que ocorre é apenas o natural entre nações cujos povos não têm laços reais sólidos, a realpolitik – que, a julgar pelo que vemos, as elites angolanas dominam melhor que as portuguesas. Sendo irrelevante a “solução” final para estas questões resta perguntarmos-mos: e quando Angola já não for “the next big thing”? Qual é a próxima terra prometida? Queremos mesmo continuar a ignorar o nosso mal-estar interno? A viver de solução de curto-prazo em solução de curto-prazo? E mesmo que queiramos isso, será viável no mundo que está a nascer?