Quando as estruturas de poder duma sociedade decidem implementar mecanismos de controlo sobre a população uma das estratégias usadas consiste em apelidar essa nova forma de controlo de ” moderna ou de modernidade”.
Esta estratégia quer envergonhar, atrofiar e amesquinhar psicologicamente os cidadãos tentando criar-lhes complexos de inferioridade caso recusem aceitar ou simpatizar com estas novas formas de controlo que surgem com roupas novas chamadas ” modernidade” ou “modernas”.
Uma destas estratégias de “modernidade” é a criação da contemplação como realidade.
Existe um trabalho de décadas visando acelerar o ritmo das pessoas quer na sua vida pessoal, quer nos seus locais de trabalho. Tudo deve ser acelerado, as pessoas tem que se mover depressa, quase ao ritmo ou mesmo para lá do ritmo das máquinas com as quais trabalham.
O objectivo é forçar o esgotamento das pessoas, transformá-las em pequenos depósitos de stress. O resultado é o esmagamento de qualquer tipo de análise pessoal, introspecção, espiritualidade, interesse pela cidadania, proximidade com qualquer ideia de ética pessoal; tudo é feito para gerar o total desinteresse, gerar o alheamento de tudo que não seja o pequeno ambiente familiar, pessoal ou do sitio onde se vive.
A dimensão social e humana dos cidadãos é reduzida à contemplação. E a micro espasmos episódicos, paroquiais, ao nível do bairro que por vezes irrompem e se manifestam de quando em vez em micro sublevações – regra geral sempre direccionadas contra os outros cidadãos que navegam no mesmo barco pequeno e micro; nunca contra os verdadeiros poderes estabelecidos.
Este ritmo acelerado faz as pessoas agir e reagir. E pouco pensar. Conduz a uma intensa aversão à introspecção pessoal. “Reflectir sozinho” e em silencio é, na nossa sociedade, considerado quase como um crime horrendo. Algo de estranho e a evitar. Criam-se todas as condições para quase obrigar as pessoas a andarem em grupos de outras pessoas apenas para não estarem sozinhos, não vá dar-se o caso de incorrem no enorme pecado que é a introspecção pessoal, a solidão e o silencio para acalmar a mente e melhor olhar para a realidade que os rodeia. E assim sair da contemplação como realidade.
A contemplação como realidade é apresentada como sendo moderna ou a modernidade. Segundo esta lógica perversa, são “arcaicos e anti progresso” os que a recusam.
Um efeito imediato sobre a população é que uma nova realidade passa a existir. Chama-se contemplação mas é derivada da inexistência de introspecção. O que antes poderia existir e era introspecção, praticada pela generalidade das pessoas, passou a ser contemplação. Do “pensar a nível interior” para a contemplação (o olhar contemplativo) de paisagens geridas e criadas pelas elites, paisagens essas que são todas artificiais, falsas e prejudiciais à população se ficar a olhar fixamente para elas.
As palavras são diferentes, os significados que ambas tem são totalmente diferentes; mas a introspecção passou a ser contemplação e a ideia verdadeira do que era contemplação foi enterrada num local desértico e escuro para tentar fazer-se ser esquecida para todo o sempre e agora todos contemplam a realidade, mas não agem sobre ela.
A Irmandade de Némesis não esquece.
Esta nova “modernidade” origina a auto desresponsabilização e cria bodes expiatórios. Como se está a contemplar (de forma moderna…), tudo o que de mal acontece é projectado em terceiros, reais ou imaginários, que são responsabilizados (mesmo que estejam a anos luz de distancia), e nada tenham efectivamente a ver com o assunto ou tendo a ver, estivessem originariamente impedidos de fazer mais do que o que fizeram.
“A política é a condução dos negócios públicos para proveito dos particulares.”
Ambrose Pierce
Eleitoralmente tivemos oportunidade de observar isso recentemente. No dia 1 de Outubro de 2017 a população portuguesa, em grande parte corrompida pelo contacto que tem com as elites e por culpa própria também, na sua grande parte destituída de ética pessoal, princípios, pouco civismo e nenhuma convicção acerca do que é a verdadeira cidadania decidiu atribuir um cartão de monopólio com os dizeres “Sairá da cadeia sem cumprir pena” à generalidade dos eleitos das recentes eleições autárquicas.
Assumindo plenamente o papel de “contempladores profissionais” (porque é moderno) em vez de agir (porque é arcaico) os portugueses decidiram votar na generalidade dos casos de acordo com as propostas de mediocridade na continuidade salpicadas pela corrupção ética dos candidatos e salteadas com a estupidez muito própria de quem julga que está a perceber imenso do que se passa e que está a proceder de acordo com a aquisição de “vantagens especiais” para si , para a sua família e para os seus.
A nível autárquico a cobardia cívica, o desligamento da situação em prol de vantagens especificas pessoais, também conhecidas como “migalhas” que são oferecidas, foi a norma, o suborno barato.
O sistema político social e económico é um jogo corrompido, onde os vencedores já estão definidos antes do jogo começar.
O comentariado político, que recebeu instruções e recebe instruções para debitar mensagens gastas também vive na contemplação como realidade e promove essa mesma contemplação.
Em laboratórios especialmente credenciados para tal dezenas de teorias saem das linhas de montagem e explicam quem são os vencedores, os vencidos, os que foram á casa de banho , os que saíram e entraram e demais futilidades.
Mas alguém lhes encomendou a missa?
A mentalidade do comentariado político é a da contemplação: só os seus interesses e de quem lhes paga contam e as missas que regurgitam cheiram mal.
Nenhum dos membros do comentariado tem capacidade para entender o que se passa – são eles próprios todos membros das mesmas classes sociais e profissionais, todos vivem nos mesmos condomínios fechados sítios e não contactam com a população; logo funcionam em circuito fechado onde apenas os ecos das suas próprias vozes se ouvem, nada de verdadeiramente “novo”, “original” e “verdadeiro” pode sair destes palradores militantes e pagos.
Apenas debitam propaganda e verdades feitas mencionadas em conversas uns com os outros.
A contemplação como realidade contamina a população para a lassidão e embrulha-a na corrupção.
Durante décadas ambos os lados do espectro político incentivaram, quer por omissão, quer por acção a corrupção ética, o abandono da cidadania, fecharam os olhos ao esmagamento dos direitos legítimos do cidadãos.
O campo para tal é fértil.
Os portugueses desde pequenos são habituados e educados a conviverem bem com “cunhas e favores”, a simpatizarem e darem por adquirido que ter um patrono (um padrinho…) é uma condição essencial para singrar na vida e educam sempre a sua prole nessa lógica. Encontrar um emprego, fazer um jeitinho, obter um favor são considerados como sendo normais e factos da vida semelhantes a comprar uma embalagem de arroz no supermercado.
Os próprios sentem no seu intimo que tal é errado, mas desvalorizam. A auto justificação vem a seguir: “se os outros fazem eu também faço”.
Com o aumento exponencial destas atitudes entramos no caos. Para onde quer que se olhe vêem-se os pagamentos em géneros ou dinheiro em que toda a gente usa toda a gente para fazer a venda da cobrança de mais favores e respectiva classificação final.
O resultado já chegou há várias décadas e há um preço enquanto sociedade a pagar.
Esta forma peculiar de viver também faz com que o seguidismo seja a norma, e se procure estar sempre com quem aparenta estar a ganhar. Quem aparenta estar a ganhar faz com que uma parte da população se junte e vote – contemplativamente de acordo com isso. (Independentemente de qual seja o partido conjunturalmente a ganhar…)
Trata-se do “voto útil” contemplativo no vencedor. É a demissão cívica total e o risco zero enquanto cidadãos.
Mas, a maior parte dos portugueses não se considera ou percebe de facto que é um cidadão. Conhece a palavra, mas não o que ela significa.
Apenas se resignam a uma vida espiritual interior débil ou inexistente e a uma cidadania quase invisível, que é trocada pelo movimento em direcção a onde julgam ver aparecer benefícios ou dinheiro, esquemas ou empregozinhos. (Nunca aparecem; estão reservados para as elites medíocres e corruptas.)
Resignam-se eles.
A irmandade de Némesis não se resigna.