Do desastre da contemplação e das eleições autárquicas

Quando as estruturas de poder duma sociedade decidem implementar mecanismos de controlo sobre a população uma das estratégias usadas consiste em apelidar essa nova forma de controlo de ” moderna ou de modernidade”.

Esta estratégia quer envergonhar, atrofiar e amesquinhar psicologicamente os cidadãos tentando criar-lhes complexos de inferioridade  caso recusem aceitar ou simpatizar com estas novas formas de controlo que surgem com roupas novas chamadas ” modernidade” ou “modernas”.

Uma destas estratégias de “modernidade” é a criação da contemplação como realidade.

Existe um trabalho de décadas visando acelerar o ritmo das pessoas quer na sua vida pessoal, quer nos seus locais de trabalho. Tudo deve ser acelerado, as pessoas tem que se mover depressa, quase ao ritmo ou mesmo para lá do ritmo das máquinas com as quais trabalham.

O objectivo é forçar o esgotamento das pessoas, transformá-las em pequenos depósitos de stress. O resultado é o esmagamento de qualquer tipo de análise pessoal, introspecção, espiritualidade, interesse pela cidadania, proximidade com qualquer ideia de ética pessoal; tudo é feito para gerar o total desinteresse,  gerar o alheamento de tudo que não seja o pequeno ambiente familiar, pessoal ou do sitio onde se vive.

A dimensão social e humana dos cidadãos é reduzida à contemplação. E a micro espasmos episódicos, paroquiais, ao nível do bairro que por vezes irrompem e se manifestam de quando em vez em micro sublevações – regra geral sempre direccionadas contra os outros cidadãos que navegam no mesmo barco pequeno e micro; nunca contra os verdadeiros poderes estabelecidos.

Este ritmo acelerado faz as pessoas agir  e reagir. E pouco pensar. Conduz a uma intensa aversão à introspecção pessoal. “Reflectir  sozinho” e em silencio é, na nossa sociedade, considerado quase como um crime horrendo.  Algo de estranho e a evitar. Criam-se todas as condições para quase obrigar as pessoas a andarem em grupos de outras pessoas apenas para não estarem sozinhos, não vá dar-se o caso  de incorrem no enorme pecado que é a introspecção pessoal, a solidão e o silencio para acalmar a mente e melhor olhar para a realidade que os rodeia. E assim sair da contemplação como realidade.

A contemplação como realidade é apresentada como sendo moderna ou a modernidade. Segundo esta lógica perversa, são “arcaicos e anti progresso” os que a recusam.

Caspar David Friedrich - Wanderer above the sea of fog

“Each of us assumes everyone else knows what HE is doing. They all assume we know what WE are doing. We don’t…Nothing is going on and nobody knows what it is. Nobody is concealing anything except the fact that he does not understand anything anymore and wishes he could go home.” – Philip K. Dick

Um efeito imediato sobre a população é que uma nova realidade passa a existir. Chama-se contemplação mas é derivada da inexistência de introspecção. O que antes poderia existir e era introspecção, praticada pela generalidade das pessoas, passou a ser  contemplação. Do “pensar a nível interior” para a contemplação (o olhar contemplativo)  de paisagens geridas e criadas pelas elites, paisagens essas que são todas artificiais, falsas e prejudiciais à população se ficar a olhar fixamente para elas.

As palavras são diferentes, os significados que ambas tem são totalmente diferentes;  mas a introspecção passou a ser contemplação e a ideia verdadeira  do que era contemplação foi enterrada num local desértico e escuro para tentar fazer-se ser esquecida para todo o sempre e agora todos contemplam a realidade, mas não agem sobre ela.

A Irmandade de Némesis não esquece.

Esta nova “modernidade” origina a auto desresponsabilização e cria bodes expiatórios. Como se está a contemplar (de forma moderna…), tudo o que de mal acontece é projectado em terceiros, reais ou imaginários,  que são responsabilizados (mesmo que estejam a anos luz de distancia), e nada tenham efectivamente a ver com o assunto ou tendo a ver, estivessem originariamente impedidos de fazer mais do que o que fizeram.

“A política é a condução dos negócios públicos para proveito dos particulares.”

Ambrose Pierce

Eleitoralmente tivemos oportunidade de observar isso recentemente. No dia 1 de Outubro de 2017 a população portuguesa, em grande parte corrompida pelo contacto que tem com as elites e por culpa própria também, na sua grande parte destituída de ética pessoal, princípios, pouco civismo e  nenhuma convicção acerca do que é a verdadeira cidadania decidiu atribuir um cartão de monopólio com os dizeres “Sairá da cadeia sem cumprir pena” à generalidade dos eleitos das recentes eleições autárquicas.

Assumindo plenamente o papel de “contempladores profissionais”  (porque é moderno) em vez de agir (porque é arcaico) os portugueses decidiram votar na generalidade dos casos de acordo com as propostas de mediocridade na continuidade salpicadas pela corrupção ética dos candidatos e salteadas com a estupidez muito própria de quem julga que está a perceber imenso do que se passa e que está a proceder de acordo com  a aquisição de “vantagens especiais” para si , para a sua família e para os seus.

A nível autárquico a cobardia cívica, o desligamento da situação em prol de vantagens especificas pessoais, também conhecidas como “migalhas” que são oferecidas, foi a norma, o suborno barato.

O sistema político social e económico é um jogo corrompido, onde os vencedores já estão definidos antes do jogo começar.

2017-10-07 queremos mentiras novas

O  comentariado político, que recebeu instruções e recebe instruções para debitar mensagens gastas também vive na contemplação como realidade e promove essa mesma contemplação.

Em laboratórios especialmente credenciados para tal dezenas de teorias saem das linhas de montagem e explicam quem são os vencedores, os vencidos, os que foram á casa de banho , os que saíram e entraram e demais futilidades.

Mas alguém lhes encomendou a missa?

A mentalidade do comentariado político é a da contemplação: só os seus interesses e de quem lhes paga contam e as missas que regurgitam cheiram mal.

Nenhum dos membros do comentariado tem capacidade para entender o que se passa – são eles próprios todos membros das mesmas classes sociais e profissionais, todos vivem nos mesmos condomínios fechados sítios e não contactam com a população; logo funcionam em circuito fechado onde apenas os ecos das suas próprias vozes se ouvem, nada de verdadeiramente “novo”, “original” e “verdadeiro” pode sair destes palradores militantes e pagos.

Apenas debitam propaganda e verdades feitas mencionadas em conversas uns com os outros.

2015-11-25 - rob riemen- 2012

A contemplação como realidade contamina a população para a lassidão e embrulha-a na corrupção.

Durante décadas ambos os lados do espectro político incentivaram, quer por omissão, quer por acção a corrupção ética,  o abandono da cidadania, fecharam os olhos ao esmagamento dos direitos legítimos do cidadãos.

O campo para tal é fértil.

Os portugueses desde pequenos são habituados e educados a conviverem bem com “cunhas e favores”, a simpatizarem e darem por adquirido que ter um patrono (um padrinho…) é uma condição essencial para singrar na vida e educam sempre a sua prole nessa lógica. Encontrar um emprego, fazer um jeitinho, obter um favor são considerados como sendo normais e factos da vida semelhantes a comprar uma embalagem de arroz no supermercado.

Os próprios sentem no seu intimo que tal é errado, mas desvalorizam. A auto justificação vem a seguir: “se os outros fazem eu também faço”.

Com o aumento exponencial destas atitudes entramos no caos. Para onde quer que se olhe vêem-se os pagamentos em géneros ou dinheiro em que toda a gente usa toda a gente para fazer a venda da cobrança de mais favores e respectiva classificação final.

O resultado já chegou há várias décadas e há um preço enquanto sociedade a pagar.

Esta forma peculiar de viver também faz com que o seguidismo seja a norma, e se procure estar sempre com quem aparenta estar a ganhar. Quem aparenta estar a ganhar faz com que uma parte da população se junte e vote – contemplativamente de acordo com isso. (Independentemente de qual seja o partido conjunturalmente a ganhar…)

Trata-se do “voto útil” contemplativo no vencedor. É a demissão cívica total e o risco zero enquanto cidadãos.

Mas, a maior parte dos portugueses não se considera ou percebe de facto que é um cidadão. Conhece a palavra, mas não o que ela significa.

Apenas se resignam a uma vida espiritual interior débil ou inexistente e a uma cidadania quase invisível, que é trocada pelo movimento em direcção a onde julgam ver aparecer benefícios ou dinheiro, esquemas ou empregozinhos.  (Nunca aparecem; estão reservados para as elites medíocres e corruptas.)

 

Hell is empty and all the devils are here.
The Tempest – William Shakespeare

 

Resignam-se eles.

A irmandade de Némesis não se resigna.

Referendos, mártires e monstros

A Europa acordou algo chocada – dentro do que é possível para uma opinião pública massificada, estupidificada e brutalizada – com o assassinato de uma política britânica, nada mais que um membro do Parlamento Inglês. O retrato que nos está a ser apresentado não podia ser mais dado a simplificações. A vítima era uma defensora dos direitos humanos, pró-emigração, politicamente reformista e fazia campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia. O seu assassino é membro de organizações racistas e violentas, condenáveis sobre todos os pontos de vista. Num referendo que se parecia inclinar cada vez para o isolacionismo britânico as coisas podem estar prestes a mudar.

UK e UEMas recuemos um pouco. Este referendo tem uma longa história que convém ser explicada. O Reino Unido sempre se viu com uma nação (e anteriormente Império) extra-europeu. Era uma potência que durante todo o seu apogeu só teve uma única política para o continente: impedir a formação de uma grande potência continental – lutou contra a Espanha e a França para tentar impedir a união dinástica das duas coroas e reforçar o seu poder comercial na guerra de sucessão espanhola (1702-1714), lutou com a França, Holanda e Áustria contra a Espanha na guerra da quadrupla aliança (1718-1720) para impedir o crescimento territorial espanhol em Itália , combateu com a Prússia e Portugal contra a Espanha e a França na guerra dos sete anos (1756-1763) para obter ganhos coloniais e enfraquecimento dos impérios coloniais rivais, criou uma coligação poderes reaccionários (Áustria, Portugal, Prússia, Espanha…) para combater a França, (quer enquanto República quer enquanto Império) nas guerras revolucionárias e napoleónicas (1793-1815), incentivou e armou os nacionalistas gregos para separar a província de um Império Otomano decadente (1820-1830), interferiu na política interna dos reinos de Portugal (1828-1834) e Espanha (primeira guerra carlista de 1833-1840) ao apoiar as facções liberais de forma a “clonar” o seu próprio regime parlamentar e forçar relações de dívida perene das duas coroas perante a banca inglesa. A lista é interminável. Não há qualquer indicio de uma ideologia que guie tal variedade de opiniões e acções e isto é explicado por um pragmatismo brutal desprovido de crenças dedicado a assegurar apenas uma coisa:  uma Europa fragmentada.

Mesmo em tempos mais recentes (e mais pacíficos) temos que compreender que a sua entrada na Comunidade Europeia foi apenas para assegurar o seu lugar à mesa e tentar com que a evolução do colosso embrionário europeu fosse orientada para uma lógica de mercado livre e desregulamentado – o que revelou ser um enorme sucesso dado o que se passou nas 3 décadas seguintes. Nunca em momento algum houve um grande interesse por uma cultura comum com o resto da europa ocidental. O Reino Unido sempre se viu, e ainda vê, como uma excepção política e cultural. A sua pertença à comunidade foi usada como forma de salvar o poder financeiro da nação tendo transformado a city de Londres no segundo maior polo financeiro do mundo (depois de Nova York). Foi uma escolha deliberada dos governos conservadores do Reino Unido dar prioridade ao sector financeiro em detrimento da economia real. Os governos trabalhistas que se seguiram reforçaram essa escolha e abriram caminho para o desastre económico que aflige a nação, com níveis de pobreza jamais vistos. Mesmo assim o novo governo conservador manteve exactamente as mesmas escolhas, infligindo ao seu povo a mesma receita que as elites portuguesas adoptaram por cá: tornar o estado uma máquina de propagação da teoria de sobrevivência dos mais fortes e abandono total de qualquer responsabilidade social, económica ou política – a famosa austeridade que se dizia ser uma força de destruição criativa mas só deixou cinzas no seu rasto.

“The forces which are working out the great scheme of perfect happiness, taking no account of incidental suffering, exterminate such sections of mankind as stand in their way, with the same sternness that they exterminate beasts of prey and herds of useless ruminants.” - Herbert Spencer

“The forces which are working out the great scheme of perfect happiness, taking no account of incidental suffering, exterminate such sections of mankind as stand in their way, with the same sternness that they exterminate beasts of prey and herds of useless ruminants.” – Herbert Spencer

É neste contexto que surge um referendo sobre a União Europeia. Um país que já não é um Império e não sabe como lidar com uma nova realidade. Um povo que se sente completamente à margem de Bruxelas e das decisões que lá são tomadas. Uma economia refém de interesses financeiros internacionais de natureza especulativa. Um interior que se ressente profundamente de Londres que vê como um sorvedouro de dinheiro, cultura e poder. Neste ambiente a propaganda agita as multidões. Ecos imperais ainda se fazem ouvir em muitos que não querem aceitar o novo status quo. As tensões de classe, que pareciam ser coisa do passado, voltam a sentir-se e os ingleses percebem que as divisões socio-económicas só se podem agravar continuando tudo como está – daí o magnânimo desprezo que têm dado às expressões de desejo de continuidade na UE manifestadas por representantes da elite (personagens mediáticas, grandes executivos de firmas financeiras multinacionais, a maioria dos políticos mainstream, a crème de la crème do mundo académico exemplificada por Oxford e Cambridge…). Não é um fenómeno limitado a marginais, psicopatas e foras da lei. É uma reacção espontânea, fruto de um mal-estar profundo numa sociedade ocidental esgotada. É algo que pode acontecer noutro lado qualquer na Europa. E isso cria medo nas elites. Medo de perderem o controlo dos mecanismos que asseguram o seu poder. Medo que sejam reintroduzidas medidas de fiscalização popular de todo o edifício legal e económico que os mantém no topo da pirâmide. Medo que contas sejam ajustadas.

"As it turns out, we don't "all" have to pay our debts. Only some of us do." - David Graeber  ps: parabéns a quem souber "ler" a foto.

“As it turns out, we don’t “all” have to pay our debts. Only some of us do.” – David Graeber
ps: parabéns a quem souber “ler” a foto.

Mas agora tudo isso vai provavelmente ser varrido para debaixo do tapete. Este homicídio marca senão o fim do debate no Reino Unido (pode ser já demasiado tarde para inverter a tendência de secessão) pelo menos o fim do debate no resto da Europa. As posições a favor da continuação na União terão agora a bênção dos céus pelo sangue derramado pela mártir, qualquer questionamento das suas intenções e interesses será ignorado ou sofrerá acusações concordar com o autor do crime – uma espécie de crime por associação intelectual. A parte racional do eleitor vai ser desligada. Não porque ele escolha fazê-lo mas porque é essa a natureza da propaganda. Pega-se numa situação insustentável cheia de zonas cinzentas de incerteza e substitui-se por uma escolha moral a preto e branco. És dos bons ou dos maus? A escolha passa a ser simples e todos podemos voltar à nossa rotina de decadência lenta mas inexorável.

Limpar a lama

Há muito tempo que a Irmandade de Némesis avisa os leitores do enclave para o risco da criação de bodes expiatórios como forma de escape de energia e tensões sociais e hoje temos o exemplo perfeito. A produção teatral que está hoje a ser encenada com toda a pompa e circunstância na Assembleia da República a propósito de bancos e banqueiros encaixa perfeitamente neste quadro mental e político decrépito.

"Não há inocentes; só aqueles que ainda não nasceram ou os que já estão mortos podem aspirar à inocência" - Stig Dagerman

“Não há inocentes; só aqueles que ainda não nasceram ou os que já estão mortos podem aspirar à inocência” – Stig Dagerman

Num regime onde o que une as elites é uma pertença social e onde a comunicação entre os membros dessa elite atravessa, fácil e diariamente, as linhas partidárias todos querem dar prova de ser valentes defensores do cidadão e da justiça. Os ilustres deputados, quais defensores dos pobres e oprimidos numa fábula medieval, esmeram-se em perguntas ultra pertinentes para mostrar que a) eles são puros, b) condenam tudo o que terá passado e c) estão do lado do cidadão comum.

"Princípio: uma coisa que demasiadas pessoas confundem com "interesse" " - Ambrose Bierce

“Princípio: uma coisa que demasiadas pessoas confundem com “interesse” ” – Ambrose Bierce

Há alguns problemas com esta versão das coisas. Quando se quer apurar a verdade de algo não se nomeiam 24 pessoas para o fazer, nomeia-se um responsável. Quando se quer obter a verdade não se transmite a investigação em directo e a cores para todos verem, as audiências fazem-se à porta fechada. E em último lugar dá-se poderes a quem investiga para de facto fazer alguma coisa, seja punir ou recompensar. Assim sendo parece que objectivo é mesmo dar um espectáculo ao país, um pouco de circo. E ao mesmo tempo ilibar a classe política como um todo para ficar bem claro ao ingénuo cidadão que tudo isto é muito lamentável mas foi algo que sempre esteve completamente fora do alcance do poder político prevenir.

bureaucracy_quoteA baixeza e manipulação que o regime faz destas situações é inqualificável na sua falta de consideração para com o cidadão. É um insulto à inteligência da nação. A Irmandade de Némesis está atenta. Os Irmãos levantaram o véu das farsas operáticas que o regime e as suas instituições teceram sobre a realidade. Não seremos enganados. Não queremos uma vítima sacrificial para satisfazer os deuses, queremos uma justiça completa e total. Só nessa base poderá Portugal reerguer-se.

A Irmandade de Némesis rejeita o teatro parlamentar como forma de se estar na vida pública.

A Irmandade de Némesis não compactua com a elite de poder.

A Irmandade de Némesis está com o cidadão.

(Mini) Manifestos tecnocráticos

Se há algo de que podemos todos estar seguros é que os meios de comunicação são inteiramente neutros em Portugal. Não são dados a preferências ocultas ou a servir agendas ideológicas de forma encapotada. A verdade e apenas a verdade. Não será então de estranhar que nos tenham presenteado com esta publicidade ao mais recente manifesto dos tecnocratas do sistema político-económico. Num pequeno vídeo explicam-nos tudo sobre as complexas realidades portuguesas, de forma simples, para não cansarmos os nossos cérebros.

"Pensar é o diálogo da alma consigo mesma" - Platão

“Pensar é o diálogo da alma consigo mesma” – Platão

Há muitos anos que o sector conservador investe imenso tempo e dinheiro em produzir obras, mais ou menos panfletárias, de divulgação das suas doutrinas – quais missionários que querem dilatar a fé e o império. São construídas especificamente para um público de classe média que que acha que deve ter opinião sobre determinados temas mas não está disposto a investir o tempo e esforço necessários para realmente entrar nas questões – todos somos demasiado ocupados hoje em dia e se as empresas podem fazer outsourcing de servidos porque não fariam as pessoas o outsourcing das suas ideias? O resultado é a propagação quase inevitável de uma visão enviesada da realidade, que leva a absurdos lógicos quando seguida até às suas consequências finais, estragos sociais provavelmente irreparáveis totalmente previsíveis e à solidificação de uma mentalidade de respostas e análises simplistas que evitem todas as coisas feias, como o confronto com a realidade empírica.

“The real political task in a society such as ours is to criticize the workings of institutions that appear to be both neutral and independent, to criticize and attack them in such a manner that the political violence that has always exercised itself obscurely through them will be unmasked, so that one can fight against them.”  - Michel Foucault

“The real political task in a society such as ours is to criticize the workings of institutions that appear to be both neutral and independent, to criticize and attack them in such a manner that the political violence that has always exercised itself obscurely through them will be unmasked, so that one can fight against them.” – Michel Foucault

Não acredita no que digo caro leitor? Olhemos então para o conteúdo do fantástico vídeo promocional que nos foi proporcionado (será de notar que a página do jornal contém a penas um vídeo com discursos dos autores, não há sequer a tentativa de fingir que se trata de uma análise jornalística ou minimamente crítica), ponto por ponto.

– Porque é que os economistas acham que têm sempre uma resposta para tudo? Ao contrário do que é afirmado pelos autores não é que haja uma procura popular de respostas junto dos economistas. A questão é que o culto ao deus mercado que tem sido imposto por todo o mundo tem por corolário a criação de uma casta “sacerdotal” de “iluminados”, que através de teorias e livros sagrados interpreta a vontade desta tenebrosa divindade. Foram os próprios economistas que se colocaram neste papel oracular e do qual não abdicam nem que tenham que reduzir toda a existência humana à mera troca de bens, serviços e promessas de pagamento. Como tal, regularmente saem dos seus transes e dizem-nos os sacrifícios que devemos todos fazer para apaziguar o seu deus. A economia, como é praticada hoje em dia, está um degrau abaixo da adivinhação através das entranhas de animais.

– Porque não há dinheiro para pagar as nossas reformas? De forma fantasiosa os nossos “rebeldes” (bem institucionais) querem-nos fazer crer que a segurança social é uma espécie de fraude que nunca fez sentido e que nunca será sustentável. Isto é a melhor tradição da escola de Chicago, uma série de premissas mal explicadas, ligadas por um raciocínio dúbio que levam a uma conclusão incrível, que implicitamente quer levar quem os ouvir e ler a pensar que no fundo todo o sistema devia ser privatizado (a subtileza é o leitor chegar a essa conclusão “sozinho”). Claro que nunca entra nos esquemas mentais dos altos sacerdotes do deus mercado que a segurança social nunca foi suposto ser lucrativa ou sequer ser um negócio. Sempre foi suposto ser um encargo que era assumido pelo estado em nome de uma estabilidade social acrescida. Que no fundo se trata de uma questão que sempre foi e deverá permanecer política. É igualmente omitido que em caso de privatização as empresas detentoras dos planos de pensões passam a poder restrutura-los a qualquer altura e que quando forem à falência todos os pagamentos cessam. Não se diz que este cenário, algo negro, já aconteceu em mais que um país que privatizou a sua segurança social. Não se fala nos milhões que ficaram sem pensão estatal e sem pensão privada, literalmente a trabalharem até poderem e até morrerem.

– Porque é que há tantos prédios em ruinas no centro de Lisboa e Porto? Aqui o vilão na história dos nossos rebeldes é o congelamento dos arrendamentos que passa a ser culpado pela decadência urbanística. Que a esmagadora rendas já não reflictam essa distorção, que as pessoas ainda afectadas essencialmente não têm como sustentar qualquer tipo de “preço de mercado” não entra na equação. Os novos sem abrigos não membros produtivos da sociedade e como tal não merecem uma só palavra. São remetidos ao mesmo silêncio dos pensionistas em regime privado que ficaram sem nada. Numa nota particularmente perversa o exemplo de fundos que detêm propriedades é obviamente público, esquecendo claro que os fundos bancários em muito ultrapassam a posse estatal.

– Porque é que há tantos professores e as turmas têm alunos a mais? Aqui foge, um pouco, a boca para a verdade aos nossos nobres curas conservadores. De facto há muitos professores em situação irregular que não têm horários dignos desse nome. De facto há professores em funções de administração que deveriam ser desempenhados por burocratas. Mas falta dizer que tudo isso foi consequência das reformas para “racionalizar o sistema de ensino”. Que o interesse servido em tais reformas não foi, como é dito, o dos professores mas o sim o de privados que ganham com a desvalorização do serviço público. Mas enfim, isso afecta apenas quem colocar os filhos no público portanto também vai para o mesmo tumulo silencioso que os pensionistas depauperados e sem abrigo.

Como vê caro leitor em pouco mais de cinco minutos de vídeo foi possível simplificar e distorcer situações relativamente simples ao ponto de alterar radicalmente a perspectiva de qualquer cidadão menos dado à reflexão por conta própria. Ainda está seguro que está a obter uma análise séria e realista por parte de comentadores institucionais e/ou “rebeldes”?

Uma dor de cabeça artística

Apesar de todas as tentativas de a comercializar, banalizar e, acima de tudo, neutralizar toda e qualquer obra de conteúdo artístico parece que ainda é possível que a arte sirva para a)Criar uma impressão estética genuína e b)Fazer uma afirmação sobre o mundo onde vivemos. Foi o que aconteceu na Rússia quando o artista Konstantin Altunin revelou recentemente a sua obra, “Travesti”. Um quadro que retrata Vladimir Putin e o primeiro-ministro Dmitri Medvedev em lingerie. O Golpe é duplamente brilhante porque por um lado cria uma obra que claramente tem uma tonalidade homoerótica num país que persegue e usa a sua comunidade LGBT como bode expiatório. Na Rússia trata-se de um rótulo de perigo (ou de ainda mais perigo que o normal) a julgar pelos séculos de pogroms e exílios para campos de concentração – ou nas versões menos públicas os encerramentos compulsivos, sem ordem médica ou judicial credível e independente, em instituições psiquiátricas até que um infelizmente incidente ponha termo à vida do dissidente. Por outro lado morde ironicamente contra toda a propaganda do que é um regime totalitário e imagem híper máscula que Putin construiu para si – passeios a cavalo em tronco nu, actividades ao ar livre rotineiramente “noticiadas”, enfim um verdadeiro Rambo moscovita.

Numa nação que se sentiu orfã começamos a entender Freud: "I cannot think of any need in childhood as strong as the need for a father's protection"

Numa nação que se sentiu orfã começamos a entender Freud: “I cannot think of any need in childhood as strong as the need for a father’s protection”

De um ponto de vista de consequências é claro que a obra já foi confiscada pela polícia por ser “imoral”, segundo uma classificação da “isenta” Igreja Ortodoxa Russa (que está extasiada por voltar a ser  o segundo poder do estado e poder policiar a vida interior de todos), e que alguém no ocidente terá que dar asilo ao artista porque de desaparecer uns meses nas mãos do FSB provavelmente não se livraria – no mínimo uns interrogatórios “pesados”. E, dado o culto de personalidade que se criou junto à figura de Putin, provavelmente bem mais que isso. É que Altunin atacou a única vaca sagrada do regime. A fonte de toda a autoridade dos líderes políticos, locais, policiais, jornalísticos, comerciais, etc. O Presidente Putin. Qualquer outro poderia ser perdoado ou talvez afastado ou ligeiramente metido no background até o riso parar. Neste caso isto não é uma opção. Em linguagem política absolutista isto é um crime lesa-majestade e não tem perdão pois neste esquema político a imagem do monarca possui uma sacralidade inviolável confundida com a da própria nação – que haja uma legião de servos públicos e privados cuja posição depende da manutenção desta sacralidade ajuda imenso a perseguir qualquer dissidência por mais ligeira que seja – especialmente neste caso, em que foi feita com humor e inteligência, atacando satiricamente os pilares em que a imagem do líder foi fundada. Haveria algo a dizer sobre o sobrecompensação e o culto da hipermasculinidade mas penso ficará para outra ocasião, quando conseguir parar de rir e apreciar esta obra de arte.

"Beauty is a form of Genius--is higher, indeed, than Genius, as it needs no explanation. It is one of the great facts of the world, like sunlight, or springtime, or the reflection in the dark waters of that silver shell we call the moon. It cannot be questioned. It has divine right of sovereignty. It makes princes of those who have it"

“Beauty is a form of Genius–is higher, indeed, than Genius, as it needs no explanation. It is one of the great facts of the world, like sunlight, or springtime, or the reflection in the dark waters of that silver shell we call the moon. It cannot be questioned. It has divine right of sovereignty. It makes princes of those who have it”

Para os mais desatentos esta polémica que a o partido de Putin arrasta contra parte da sua própria população já tinha dado que falar aquando da organização dos Jogos Olímpicos de Inverno tendo sido discutido por muitas nações o boicote ao evento como protesto formal contra uma descriminação injusta sobre pessoas que não têm nem defesas nem a quem recorrer. Convém não esquecer que a Rússia será o país com leis mais draconianas no que toca a ONGs, especialmente aquelas que não servem de frente a organizações nacionalistas apoiadas pelo Kremlin. As acusações multiplicam-se: espionagem, lavagem de dinheiro, corrupção, tentativa de terrorismo cultural (seja lá o que isso for). Apanhando a linguagem dos comunicados de segurança dos EUA o governo russo aprendeu as palavras-chave que deve usar quando quer denegrir qualquer pessoa ou grupo e a primeira de todas é: “extremista”. Usando uma simples obra de arte libertadora da opressão monolítica do regime para insinuar algo vagamente insidioso que poderia atentar contra a segurança dos cidadãos russos.

Numa última nota mais linguística… há uns anos atrás perdemos outra palavra importante do nosso léxico: liberdade. De tanto sobre uso que foi feito (especialmente por pessoas que estavam interessadas em tudo menos nela) que mais ninguém a coloca em nenhum escrito seu se quiser preservar alguma credibilidade. Perdeu significação junto das pessoas. Gera apenas uma certa apatia emocional normal do discurso demagógico pré-fabricado. Agora é a vez de “extremista” e “terrorista”. A este ritmo corremos o risco de ter que abandonar a linguagem como meio de comunicar eficazmente já que poucas palavras parecem estar autorizadas a conversar o seu sentido original.

Portugal, a Europa e a Modernidade

Idealmente a ideia de uma cultura partilhada a nível europeu é apelativa a qualquer pessoa que tenha um mínimo de sentido de história. Como nações, povos, culturas e seres humanos interagimos há tanto tempo uns com os outros que não me ocorreria nada de mais natural que embarcar num projecto de alguma integração a nível continental, especialmente a partir da segunda metade do século XX. O problema, que só se começou a manifestar décadas mais tarde, sempre foi a questão da integração. Quem deveria fazer parte do clube e quem não faria sentido ser convidado. Mas o projecto europeu, como a maioria das ideias que parecem funcionar bem, foi esticado até ficar permanentemente deformado. De uma ideia igualitária fomos entrando numa Europa de níveis. De um projecto de cultura comum foram aceites povos que nem tinham começado a digerir a modernidade (incluindo Portugal) acabando por criar desfasamentos que até hoje permanecem por resolver. De uma cultura de cidadãos derivámos numa cultura legalista – devido em grande parte à dificuldade de educar cidadãos em grande escala mas também devido à falta de interesse que todos os países que se juntaram ao núcleo mostraram pelos esforços necessários para atingir fins verdadeiramente exaltados.

"Things fall apart; the centre cannot hold" - William Butler Yeats, The Second Coming, 1919.

“Things fall apart; the centre cannot hold” – William Butler Yeats, The Second Coming, 1919.

Será verdade que o sistema económico terá desempenhado um papel de exacerbamento de tensões mas, em última análise, não as criou. Está em voga ver as tendências da ideologia económica agressiva da Comissão Europeia como principio, meio e fim dos problemas que afligem a União. Mas nada podia estar mais longe da verdade. A guerra económica é uma realidade mas não teria efeito se não tivesse encontrado um solo fértil em desunião, ressentimentos e diferenças profundas de sensibilidades. Desunião que sempre esteve presente (basta pensar nas questões ligadas à emigração) e foi sentida cada vez mais desde a implementação do euro. Que criou oficialmente dois escalões de pertença e levou a um processo de inevitável acumulação de riqueza no centro e esvaziamento económico da periferia. Os ressentimentos não são menos graves que no passado nem se resumem a estereótipos irracionais de cada nacionalidade, são os interesses divergente das várias nações (reconhecidas ou não como tal) a serem forçadas num mesmo molde quer queiram ou não. Uma certa historiografia germanófila usa, e abusa, do exemplo da ocupação francesa e belga do Rhur, entre 1923 e 1924, para justificar parte do ódio nascente na Alemanha pós-guilhermina, e de certa forma criar um dos, muitos, escapes morais para evitar a culpa colectiva pelo que foi o terceiro reich e moralizar a sua recente ascensão. Curiosamente os mesmos “intelectuais” (chamemos-lhes antes detentores de cátedras universitárias, de “spots” como comentadores televisivos ou ambas as coisas) falham em traçar o mesmo elo de ligação quando se humilha um país que deu sangue pela sua independência como a Grécia (e que curiosamente resistiu à agressão alemã antes) ou se destrói o orgulho espanhol sem pensar. Não espero convencer ninguém da verdade destes factos, apesar de serem evidentes por observação, pois conheço a mentalidade portuguesa. À direita apenas aplaudirão a crítica à União enquanto pensarem que implica uma rejeição total da modernidade e da mentalidade cosmopolita. À esquerda apenas aplaudirão se acreditarem que se está a fazer uma crítica radical ao sistema económico sendo a imaginária fraternidade europeia sacrossanta. E ao centro nunca aplaudirão algo que mude de forma tão radical o “status quo”. É demasiado ameaçador ter que encarar as falhas europeias. É demasiado aterrador perceber o vazio total do projecto europeu tal como ele existe (que repito, é o único que este país teve em “democracia”). Algo teria que mudar e isso é pura e simplesmente inaceitável. Quase, senão mesmo, criminoso por expor o esqueleto do sistema à observação dos “comuns”.

"'O que fazer?', é o que se perguntam, em unanimidade, os poderosos e os subjugados, os revolucionários e os activistas sociais, entendendo sempre com essa questão o que os outros devem fazer; ninguém se pergunta quais são as suas próprias obrigações." - Lev Tolstoi

“‘O que fazer?’, é o que se perguntam, em unanimidade, os poderosos e os subjugados, os revolucionários e os activistas sociais, entendendo sempre com essa questão o que os outros devem fazer; ninguém se pergunta quais são as suas próprias obrigações.” – Lev Tolstoi

E assim entramos no problema mais profundo de Portugal em particular.  A questão da modernidade e a sua relação com o português médio. Não é tema novo, basta requisitar um livro sobre o renascimento europeu para perceber que o nosso atraso é congénito. E isso foi apenas o prelúdio para quinhentos anos de atrasos e falhanços (como honradíssimas excepções por parte de homens e mulheres que deram de si, por vezes literalmente, para fazer este povo evoluir). O iluminismo teve uma breve hipótese de começar a brilhar com Pombal mas foi sufocado pelo Portugal tradicional. Bafiento, conservador, ignorante e fanático, esse Portugal, encarnado na monarca louca que pôs fim à carreira do marquês, nunca quis entrar no mundo real, ou se quer admitir que as questões pudessem ser mais  complexas que aquilo que o seu entendimento, quase-medieval, atingia. Mouzinho da Silveira tentaria mais tarde fazer o país reentrar no seu século mas sem sucesso, a mudança necessária provou ser demasiado vasta e a sua personalidade demasiado franca acabando mais uma vez por ser afastado por um herdeiro não distante de Maria I, a louca. Avançando mais um pouco entramos no fenómeno ainda hoje pouco conveniente da aceitação do Estado Novo e do conforto que foi para um país atrasado que nunca se quis verdadeiramente revoltar contra o seu senhor – que até na demência conseguiu reter a coroa. Não tenhamos ilusões. É uma história de resistência constante da parte menos ilustrada, e rural (não é acidental a desproporcionalidade da representação do interior profundo durante o regime salazarista), da nossa nação ao mundo, mesmo quando lhe demonstram a barbárie do seu comportamento. Pensou-se que meia dúzia de anos de voto universal e algum bem-estar efémero traria realmente uma mudança profunda? As coisas correm mais profundamente que isso. A discussão económica, o verniz partidário e a pertença religiosa (católica ou maçónica, é indiferente) obscurecem tais coisas mas os sentimentos são os mesmos. A não-responsabilidade. A não-cidadania. Mais que tudo a nação sente-se oprimida por si própria. Incapaz de tomar decisões, como sempre, e igualmente incapaz de aceitar as consequências que outros tomem decisões por si. Como venho a repetir desde há algum tempo, o país é um gigantesco não-projecto sem solução credível.

O fascínio com os bodes expiatórios

Se há algo que caracteriza os grupos humanos (sociedades, nações, agremiações, clubes de leitura, etc) é a desresponsabilização pessoal. O facto da complexidade social ter aumentado vertiginosamente nos últimos séculos tornou todo o fenómeno mais óbvio e deixou-nos ainda menos prontos a assumir responsabilidades que no fundo achamos que dividimos com mais pessoas. Mas mesmo isso é insatisfatório, já que levado às suas últimas consequências quereria dizer que possuímos de facto responsabilidades (por muito diluídas que sejam em processos de decisão comum ou autoritários) pelas situações que nos rodeiam, pelo que nos ocorre, pelo que acontece aos outros. Isto gera um problema para a mentalidade portuguesa, que é incapaz de assumir os erros cometidos na proporção devida. Vivemos de extremos. Tal como a percepção feminina ainda alterna, na mentalidade popular, entre a virgem e a prostituta também a do cidadão comum tende a alternar entre a do “santo vivo” e o “diabo em pessoa”. Uma democracia não consegue prosperar num pântano mental destes. É impossível. Torna-se extremamente árduo enfrentar os problemas quando não se é capaz de apontar a sua fonte real ou o que é preciso mudar, mesmo que seja dentro de nós, para os corrigir.

Anjos e Demónios?

Anjos e Demónios?

Daí o nosso fascínio nacional com a figura do bode expiatório. Alguém que, independentemente de ser um santo ou um demónio, é forçado a aceitar responsabilidades maiores do que aquelas que lhe cabem realmente. Sim o político é corrupto, nepotista ou incompetente (entre outras coisas) mas quando a população não penaliza eleitoralmente tais comportamentos onde fica a admissão de fraca ética pública por parte da cidadania? O sistema judicial pode não funcionar e estar viciado mas, mais uma vez, onde está a sociedade civil a indignar-se e a agir de forma a penalizar os agentes que a controlam? A necessidade desse alguém que seja transformado num “devorador de pecados” tem um fundo de narcisismo profundo porque rejeita a responsabilidade pessoal e colectiva dos cidadãos naquilo que lhes ocorre. É uma afirmação de que o corpo social é “puro” e que se o purgarmos de alguns elementos maus tudo voltará ao normal. É gritar aos quatro ventos a nossa inocência pessoal. Podemos não ter prestado atenção durante quarenta anos ao que se passava na economia. Mas somos inocentes. Podemos ter continuado a votar sem o mínimo de exigências éticas. Mas somos inocentes. Podemos ter abandonado os nossos concidadãos à sua sorte quando os vimos serem devorados por um sistema económico e social perverso. Mas somos inocentes.

"Purificando" o corpo social.

“Purificando” o corpo social.

O egocentrismo de tal posição torna-se ainda mais gritante quando o pânico se junta à mistura. Quando o inevitável peso de tanta “inocência” começa a afundar uma sociedade complexa começam os pedidos de “justiça” histéricos. Mas não é justiça que verdadeiramente querem. A punição de quem falhou, de quem violou a lei, de quem teve uma ética pública duvidosa é secundária e completamente insuficiente para cumprir o verdadeiro objectivo das “massas inocentes”. O que realmente procuram é a absolvição. A afirmação social que todos os males emanaram daqueles condenados e que todos os outros estão livres de qualquer mácula. A conclusão deste triste ciclo (repetido tantas, tantas, tantas vezes) é a perda do conceito de justiça. Seja ela inflexível ou tolerante tal ideia não tem lugar neste universo mental. E talvez seja essa a verdadeira tragédia. Que a única coisa requerida para apaziguar as consciências seja o sangue de meia dúzia de “pecadores”, caídos dos seus pedestais – aqueles cuja posição permanece intacta continuarão a ser adorados como deuses vivos. Que na pressa, no calor do momento, de se criarem as “listas de proscritos” para afixar no fórum se falhe mesmo em punir toda a culpa, em admitir todas as falhas. Os casos mais gritantes serão talvez eliminados mas as raízes que os permitiram jamais serão arrancadas. Serão as sementes da próxima geração de perversidades que permanecerão intactas enquanto a nossa obsessão for apenas queimar bodes expiatórios na praça pública.

“Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazer”César Marco Aurélio Antonino Augusto.