O fetiche da comunicação

A abundância de conteúdos no nosso tempo levou a um certo endeusamento do debate e de toda a comunicação em geral. De algo utilitário (uma ferramenta se quisermos) passou a ser algo que é um fim em si mesmo. Já não serve um propósito. De facto é uma forma de evitar ter um propósito. O falar sobre algo substitui a interacção real com o objecto, o que por sua vez o transforma numa virtualidade. As pessoas falam demasiado porque têm medo de agir sobre seja o que for. Falam porque isso não tem consequências. Falam porque fogem da realidade. E enquanto alguma forma de conforto material persistir a maioria continuará contente neste jogo de auto-engano. Enquanto houver alguém abaixo na hierarquia socioeconómica que o cidadão comum possa desprezar haverá a ilusão que de alguma forma se é especial, que se entende o que se passa e que no fim as coisas até vão correr bem. A corrupção intelectual que esta mentalidade causa é particularmente danosa por ser auto-induzida.

"Quem julga caçar é caçado" – Jean de la Fontaine

“Quem julga caçar é caçado” – Jean de la Fontaine

Pois ao contrário do que a maioria dos psicólogos modernos opina esta situação não é um processo inconsciente para a maioria das pessoas. Os cidadãos estão perfeitamente cientes do impacto real do seu discurso (zero) e preferem ser inexistentes a arcar com responsabilidades. Esta forma de estar na vida leva inevitavelmente a uma certa destruição das barreiras entre o que é entretenimento e o que é suposto ter significado – já que quer o discurso sobre coisas “sérias” quer a ficção obtêm o mesmo resultado real: zero. E aqui entramos no campo da proliferação descontrolada de conteúdos sobre tudo o que se possa imaginar. É esta uma das causas dos ciclos noticiosos de 24 horas ininterruptas, das redes sociais, etc. Ao retirar a possibilidade de um discurso que leve a algo real e concreto a comunicação degenerou numa forma de entretenimento com meros objectivos propagandísticos e comerciais.

"Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante" – George Orwell

“Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante” – George Orwell

É esta dose de informação indiferenciada (em que o ficcional e o real não se distinguem), que se tornou uma droga altamente aditiva para tantos, que leva ao estrangulamento da sociedade civil. Porque a acção política, social e económica não se compadece com as necessidades emocionais dos cidadãos, ela é necessária mesmo que os cidadãos apenas estejam interessados numa interminável conversa sem objectivo. Dado este caos mental não é portanto de estranhar que até os meios de informação, nominalmente, livres (como blogues ou fóruns) se comportem como produtores de conteúdos comerciais. Multiplicam os temas e posts diários numa tentativa de dar ao utilizador a dose de droga “informativa” que ele quer, mesmo quando o necessário é uma desintoxicação e uma religação com a realidade. Numa tentativa de permanecer relevantes acabam por ser submersos num mar de símbolos e imagens.

"Where there is power, there is resistance" – Michel Foucault

“Where there is power, there is resistance” – Michel Foucault

Para quem quiser emergir desta inundação de trivialidades ficcionais o caminho é relativamente simples ainda que nem sempre agradável. Será necessário começar a aceitar que muitas vezes a realidade não satisfaz as nossas necessidades e que os substitutos fictícios só nos alienam e colocam ainda mais longe da possibilidade de um dia ser capaz de suprir essas necessidades. Em segundo lugar terá que começar por procura um porto seguro, uma fundação sólida onde possa reconstruir a sua pessoa sem interferências nem agendas – é essa uma das funções da Irmandade de Némesis. E por último começar a viver coerentemente com aquilo que se pensou, com quem somos e queremos ser. A longo prazo quem seguir este caminho encontrará estabilidade, saberá distinguir o real do falso e acima de tudo será capaz de acção real (que cause mudanças tangíveis) sem se deixar enganar por opiáceos intelectuais. Quanto aos que se afastam de um caminho de individuação e de realismo é escusado falar. Pertencem ao grupo dos náufragos da sociedade moderna. Perderam-se em alto mar e no seu delírio deixaram de ter a capacidade de distinguir entre as suas alucinações e o que realmente existe.

The Long Haul

The Long Haul – NO

We’ll be fine I’m sure
Just use the other door
I wanna have a house like they did

We wrestled till we cried
They fucked our state of mind
Don’t celebrate me ‘cause I’m jaded

Welcome to the storm
We’re babies till we’re born
Then adults from our first day breathing

Our innocence was staged
The jury all got paid
I’d lock it but it’s not worth stealing

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

We’ll be fine I’m told
Together we’ll grow old
So kiss me till the last train leaving
Then stand yourself by me
We’ll fall until we’re free
This helium prefers no ceiling

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

It must get better than this
Cause as far as I can see
The world belongs to me
There’s a place at your table with my name on

When we walk
They roll the carpet out at our feet
And when we talk
They gather around in chairs on the street
Cause we’re the kings of imagining things

When the drunks start singing this way
Babies got her best dress stained
I hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

When the drunks start singing this way
Baby’s got her best dress stained
Hope you got a minute
Hope you want me in it
For the long haul
All night long

We’ll be fine I’m sure
Just use the other door
I wanna have a house like they did

Desistir de pensar

Socialmente existe uma hierarquia de valores não oficial que rege a esmagadora maioria das pessoas. É silenciosa. Não aparece num decreto ministerial a preto e branco. Não nos é sequer imposta no sentido clássico de termo – usando as definições de Isaiah Berlim a nossa “liberdade negativa” é respeitada, ou seja, estamos livres de coacção directa – isto vale o que vale, como o próprio Berlim demonstrou pela falta de escrúpulos que usou na supressão indirecta do trabalho de rivais académicos e pessoais. Mas é omnipresente. Na era do homo economicus não será com certeza de estranhar que essa hierarquia seja de natureza económica. No topo da hierarquia estão sem dúvidas as actividades que, pelo menos potencialmente, se traduzem num ganho. Algures entre o meio e o topo teremos aquelas que apesar de não se traduzirem num ganho monetário valorizam socialmente ou representam a procura de prazer. Na base encontraremos aquelas funções, tarefas e valores que se traduzem num esforço por parte do individuo mas que não lhe acrescentam nada ao seu património nem melhoram o seu status social. Entre este grupo estará sem dúvida a reflexão, o nexo das nossas escolhas éticas. Este é possivelmente um dos riscos mais subavaliados pelas nossas sociedades modernas. O desistir de pensar. O predomínio do pensamento de curto prazo e contabilístico exclui, com o passar do tempo, o acto de pensar de quase todas as esferas que antes eram naturalmente suas. As questões referentes ao trabalho passam a ser ou um jogo de somas ou, na maior parte dos casos, uma necessidade de submissão que embrutece o sujeito. As escolhas sociais que reflectem a forma como nos vemos uns aos outros (e por extensão natural como nos vemos a nós próprios) passam a obedecer a um estrito critério de utilidade ditado por uma ordem tecnocrática difusa a cujos parâmetros as pessoas inconscientemente foram aderindo, abandonando a hipótese de formularem elas próprias julgamentos livres e claros sobre a condição humana. Até as questões referentes às escolhas políticas passam mais uma vez também a ter como referencial único e exclusivo o económico ou monetário devido ao vício do pensamento e à incessante propaganda do que em tempos medievais seria denominado o topo do “Terceiro Estado”, aqueles que produzem.

"Multiplicaste os teus negociantes, mais do que as estrelas do céu; a locusta se espalhará, e voará" [Naúm 3:16 - Os delitos de Nínive: a sua ruína inevitável]

“Multiplicaste os teus negociantes, mais do que as estrelas do céu; a locusta se espalhará, e voará” [Naúm 3:16 – Os delitos de Nínive: a sua ruína inevitável]

Este pensamento que é perdido torna-nos a todos mais frágeis em termos humanos e intelectuais (e para os que estão predispostos a aceitar esse principio: até espiritualmente) à medida que o conjunto de ideias a que podemos recorrer, as combinações que somos capazes de estabelecer e as inovações que conseguimos acrescentar diminuem a pique. Até a própria filosofia se foi deformando sobre o seu efeito, ganhando falsa complexidade nos corredores da academia e perdendo significado até se transformar no que é no presente: quase uma relíquia académica cuja actividade consiste em dar algum apoio teórico à “técnica”. Caímos longe do amor ao conhecimento e da ideia que a filosofia é algo universal aplicável às nossas vidas. O quadro de referência predominante é um de ganho pessoal e produtividade e, ao longo de muitas décadas (ou mais se quisermos ser exactos séculos), foi-se expandindo ao ponto de não deixar quase uma única área fora da sua influência. Forma uma espécie de teoria unificadora do comportamento humano mas apenas por rejeitar todas as outras opções e não por conseguir englobar todas as possibilidades. De certa forma fomos levados uma espécie de “banalidade do mal”, como escreveu Hannah Arendt, mas por caminhos diferentes do totalitarismo fascista. A banalidade do mal define-se pela sua mediocridade, pela sua afirmação que pensar se tornou redundante, desnecessário e talvez até nocivo. Seguem-se ordens no caso fascista e no nosso caso consumista faz-se o que todos fazem ou que esperam que façamos. Em qualquer dos casos obedece-se, mais que tudo quer-se aceitação na ordem das coisas. De uma forma que só por descrita como irónica a sociedade da produção e do individualismo está a legar-nos um mundo crescentemente conformista e uniforme como as sociedades ditas soviéticas nunca esperaram alcançar nos seus dias mais ambiciosos. Esqueçam as roupas iguais teremos mentes iguais.

“The trouble with Eichmann was precisely that so many were like him, and that the many were neither perverted nor sadistic, that they were, and still are, terribly and terrifyingly normal. From the viewpoint of our legal institutions and of our moral standards of judgment, this normality was much more terrifying than all the atrocities put together.” - Hannah Arendt [Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil]

“The trouble with Eichmann was precisely that so many were like him, and that the many were neither perverted nor sadistic, that they were, and still are, terribly and terrifyingly normal. From the viewpoint of our legal institutions and of our moral standards of judgment, this normality was much more terrifying than all the atrocities put together.” – Hannah Arendt [Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil]

Não se levanta o espectro da banalidade do mal levianamente. Já que como Eichmann dizia apenas cumprir ordens e que o seu juramento de obediência quer às SS quer ao Fuhrer pressuponha que qualquer análise do conteúdo das suas ordens seria não só inútil como pernicioso também o burocrata moderno, público e privado, adoptou esta estranha forma de vida como modo de estar em sociedade. O cidadão que, como está na moda, “apenas vive o momento”, sem nunca considerar o porquê das suas escolhas. Quem estará ele a validar? A quem entrega o seu poder? Qual o preço do seu isolamento? A nada sabe responder, apenas age como é esperado, anseia apenas por cumprir as metas que outros definiram para si. O economista que atinge os números pretendidos ignorando os estragos humanos que causa usando apenas a expressão “não se pode fazer uma omelete sem partir ovos”. O executivo que aumenta a sua margem de lucro através da destruição de bens públicos, sabendo à partida estar a excluir um enorme número de pessoas de serviços básicos (“se nós não fizéssemos alguém o faria”). O político que se serve a si próprio deixando um rasto de devastação por onde passa (“todos se servem, é como as coisas funcionam”). Todos são o mal ao aceitarem de uma forma ou de outra o papel de carrascos de pessoas livres de qualquer culpa e sem possibilidade de defesa. Todos são medíocres na sua recusa em aceitarem que são sequer seres pensantes ou sequer na sua intenção de negarem seja o que for a outros. Na sua visão são apenas agentes, quase inanimados, que se regem por leis quase físicas que os obrigaram a comportar-se de determinada forma. Na sua mente isto exclui qualquer noção de culpabilidade e como tal permite manter uma noção de normalidade. Ao fim de um dia em que podem ser responsáveis por miséria, sofrimento e morte vão para casa, para com as famílias (que os glorificam pela sua posição social) ter serões normais sem nunca dispensar um segundo pensamento às suas vítimas.

Cumpra o seu dever – não vote

Aproxima-se o fim de mais uma fase do ciclo eleitoral, desta vez para eleger o que poderia ser descrito como o órgão do poder político menos eficiente em existência: o poder local. Agitam-se as bandeiras cansadas e gastas de tanto uso, dizem-se as mesmas trivialidades que um público indiferente espera ouvir – sendo que o objectivo não é convencer ninguém da sinceridade das intenções ou da seriedade dos planos (essa possibilidade não é sequer uma opção) mas apenas gerar menos hostilidade espontânea que o opositor – colam-se os cartazes com algumas caras conhecidas e outras tantas que nunca vimos na vida com slogans tão banais que nem passando por eles todos os dias os conseguimos fixar. O cerimonial prossegue, vazio de significados mas com alguma pompa, respeitado até á mais ínfima minucia legal ou tradicional não vá alguém dar pela falta de algo.

"Bureaucracy is a giant mechanism operated by pygmies."

“Bureaucracy is a giant mechanism operated by pygmies.”

Se num ano normal a maior deste ballet altamente coreografado, e sem audiência, passaria em grande parte desapercebido no ano 5 do apocalipse económico quase não figura de todo nem na mente dos funcionários dos partidos (com a excepção óbvia daqueles que esperam vir a ser eleitos). Se olharmos para a curta experiência democrática portuguesa é fácil reparar como passado menos de uma década da mudança de regime o bom funcionamento das instituições “democráticas” começou a ser, lenta mas de forma inexorável, redefinido de forma a que o sucesso seja medido pelo grau de desinteresse que gera (ou na gíria burocrática: “o normal funcionamento das instituições”). Tudo para nos proteger de populistas claro. Se há algo que causa de suores nocturnos ao burocratas que gerem o sistema partidário e económico é o “populismo”. Ou como Max weber lhe teria chamado, de forma mais correcta, a autoridade carismática. Horripila-os porque sabem que num campo em que não seja permitido usar as vantagens institucionais acumuladas e os contactos organizacionais nenhum deles existiria. Outro tipo de líder muito diferente emergiria e reconfiguraria todo o funcionamento do sistema e tal, obviamente, não deve ser permitido. Esta liderança está inteiramente “ligada à máquina” em todos os sentidos da expressão.

"We are afraid of the enormity of the possible."

“We are afraid of the enormity of the possible.”

Resta-nos a nós, cidadãos, a escolha estéril dos candidatos ligados à máquina. A amiba a, b ou c. A escolha é toda nossa. Quase que se ouvem os sinos a tocar de tanto êxtase que os portugueses sentem com tanta liberdade. Dado o jogo viciado proposto a melhor opção é como sempre abstermo-nos de participar. Quando nenhum resultado positivo pode emergir o melhor é não contribuir para nenhuma das alternativas igualmente más – quem escolhe ignorar este raciocínio esquece-se que apenas estará a cooperar (com boas ou más intenções) com algo que não deseja de verdade e que em nada ajudará o seu bem-estar.

"As societies grow decadent, the language grows decadent, too. Words are used to disguise, not to illuminate, action: you liberate a city by destroying it. Words are to confuse, so that at election time people will solemnly vote against their own interests."

“As societies grow decadent, the language grows decadent, too. Words are used to disguise, not to illuminate, action: you liberate a city by destroying it. Words are to confuse, so that at election time people will solemnly vote against their own interests.”

Mas para quem não vê nada de mal com o que se passa. Quem não sente nada de errado com a forma como toda uma sociedade é encurralada. Para quem acha que retirará benefícios com a continuidade: que estas palavras sejam ignoradas e o ritual prossiga.

Irmandade de Némesis 

Ownership

Que me perdoem os puristas da língua portuguesa pelo anglicismo mas esta palavra é de facto o melhor termo para descrever aquilo que me trás aqui hoje – e se não perdoarem podem fazer todos birra durante o chá das cinco no Grémio Literário ou no Clube Maçónico mais próximo. Ownership, o sentido de propriedade. De que algo nos pertence. Não necessariamente num sentido totalitário mas antes numa interpretação mais participativa. Somos parte interessada e responsável sobre algo. É algo que falta em quase todas as esferas da sociedade portuguesa. Ninguém se sente responsável por nada mesmo quando é algo que lhe afecta o dia-a-dia. E sim poderemos argumentar, com algum sucesso diga-se, que quase cinco décadas de ditadura combinadas com um pesadíssimo legado histórico inquisitorial fizeram do povo português extrariamente pouco participativo ou disponível a envolver-se. Mas isso seria uma saída muito fácil. Uma mera entrega a um falso fatalismo histórico que esconde uma recusa muito mais consciente de qualquer envolvimento pessoal. O nível de desinteresse do eleitor (mais uma vez recuso-me a usar a palavra cidadão, a maioria não o são de facto) é inaudito quando comparado com países de desenvolvimento comparável. É como se nada afectasse directamente o eleitor fora das portas da sua casa. O que leva todo e qualquer estrangeiro que passe uns tempos por cá a fazer sempre a mesma e inevitável pergunta quando vê a mão descuidada com que partidos, governo, tribunais e empresas governam este país: vocês não querem saber? Mas é o vosso próprio interesse e destino?

"Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto"

“Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto”

Eu estou na minoria em Portugal. Concordo com o estrangeiro. É de facto aberrante que o eleitor se consiga abstrair (recorrendo às drogas recreativas do costume: porreirismo, círculos familiares, consumismo, virtualidades, colaboração activamente na neutralização de formas de protesto, entre outras) ao ponto de rigorosamente nada, com a possível excepção da destruição total da cidade onde habita (desde que afectasse o seu bairro claro), lhe parece causar qualquer tipo de impressão emocional ou intelectual. É sinal de uma falta de investimento pessoal nas instituições e no país que brada aos céus. De uma incompreensão de como as instituições cívicas têm que funcionar que parece impossível nos dias modernos – é como se gerações inteiras nunca tivessem tido contacto com o legado grego ou romano que nos define. Mas, talvez a situação se torne mais compreensível quando começamos a analisar o espectro político tradicional português. À direita quer-se que as instituições cívicas falhem. De forma muito simples é isso. Toda a mudança causa indigestão. Ressente-se o papel libertador do individuo que o estado (quase sem querer) desempenhou e a cruzada deste sector é “provar” que o estado é maligno para poder devolver o poder às instituições totalitárias tradicionais: o patrão todo-poderoso e a o poder religioso apoiado por reconhecimento político. Nesse sentido a doutrina que sai destes púlpitos é uma apenas: confundir qualquer comportamento cívico com uma espécie de colaboracionismo com instituições desacreditadas publicamente sendo a solução lentamente dissolver tudo até o poder cair de podre no sítio do costume. À esquerda o caso torna-se ligeiramente mais surreal porque o conceito de “ownership” ou posse tem conotações, na mente dos ideólogos, com o projecto de Thatcher que usando essa mesma palavra como slogan e arma de arremesso à unidade britânica acabou por servir-se dela para encobrir a transferência de uma enorme fatia dos custos sociais, que eram garantidos pelo estado, para as classes britânicas mais pobres – que literalmente se viram obrigadas a pagar os “seus próprios apoios” através de esquemas de privatização de habitação, saúde, água, gás, transporte e ensino. As marcas na esquerda europeia foram profundas (e tinham mesmo que ser já que o processo foi exportado e na sua essência define a “terceira via” dos anos 90 e 00) e permanecem dolorosas até hoje. Impedindo-os de distinguir o que é um saudável sentimento de posse da nossa própria sociedade e das instituições públicas (a vida pública) do que é a mão fria da “providência” do deus mercado e da indiferença para com quem ficou pelo caminho. De qualquer forma esforços para envolver civicamente os eleitores são igualmente anátema deste lado.

Um por todos e... *suspiro*...

Um por todos e… *suspiro*…

Isto, como sempre, sobra para o eleitor que se quer (e deveria) transformar em cidadão. Vê-se preso à bagagem histórica do país e ainda tem que carregar a ideologia de dois sectores ideológicos que provavelmente lhe são tão queridos como uma ténia a um cão. Mas preso ou não preso só este eleitor que quer ser cidadão é que pode quebrar este bloqueio. Não sendo sugado para o eixo da disfuncionalidade: partidos, governo, tribunais e empresas. E Impedindo que lhe martelem conceitos ideológicos que têm poucas bases na realidade e vindos muitas vezes de quem há muito se acomodou com este estado de coisas tendo atingindo um certo nível de conforto. Só quando o eleitor quiser o manto da cidadania e reclamar as instituições como suas, recusando os mecanismos viciados que foram colocados ao seu dispor, poderá ter verdadeiramente voto.

Os ares do Verão

Para que serve o Verão em Portugal? Até há uns anos (2007-2008) servia como ritual de purificação da classe média que se isolava através do turismo massificado em zonas de praia com planos urbanísticos horríveis. No entanto isso tem vindo a alterar-se. A mobilidade reduz-se a cada ano que passa e cada vez mais pessoas ficam em casa a meditar sobre o que fizeram o ano todo. A contemplar os seus erros. Sem banhos de sol e mar podem encarar mais sobriamente o que esses enganos podem implicar para o seu futuro. Será que a anunciada recuperação terá alguma continuidade depois do normal “boost” de Verão? Poder-se-ão pagar as contas de saúde que se vão acumulando à medida que as poucas unidades ainda totalmente públicas começam a perder os poucos recursos que lhes restavam? Será que haverá dinheiro para que os filhos possam continuar a estudar agora que o ensino vai seguir o caminho do SNS e será incrementalmente pago? Os abutres televisivos fazem a cacofonia do costume mas nada parece claro. E assim se perdem as noites de sono dos mais prescientes.

"O culpado que nega as suas culpas - dobra-as"

“O culpado que nega as suas culpas – dobra-as”

Os mini casos de corrupção política e pessoal ocupam as semanas e a confusão dá lugar a exigências algo vagas de “justiça” – dentro do estilo de uma populaça medieval irada: “que se tirem as maçãs podres do cesto” (que o cesto em si esteja podre é outra questão que escapa à visão de muitos). Mas a pergunta mais perceptiva é porque é que estes “escândalos” aparecem todos de seguida. Se olharmos para a normal rotatividade dos partidos penso que será fácil de perceber que esta continuação de governo não estava nos planos. Isso aumentou muito as tensões. Já em tempos normais o teria feito, mas numa altura em que os aparelhos partidários estão mais apertados a urgência é sentida como a fome de quem não vê uma sandes há uma semana. Não espaço para o cavalheirismo habitual. Não se podem deixar estas coisas passar – mesmo que seja do interesse de qualquer sistema estável que os principais agentes de poder não chamem a atenção dos governados sobre as suas falhas, especialmente quando são partilhadas, já que não só os enfraquece a ambos como ao sistema que lhes permite existir. Mas quando a fome aperta e os recursos escasseiam os cavalheiros perdem os seus bons modos e tornam-se visivelmente mais tribais, tornando todo o jogo de interesses mais transparente.

"Os traidores são colhidos na sua própria cobiça"

“Os traidores são colhidos na sua própria cobiça”

Mas a vida prossegue. Por inércia. Por incapacidade de reacção. Por apatia. Por indiferença. Por cobardia. Talvez os deputados alemães tenham alguma razão e Portugal seja um país de “mansos”. Talvez. O calor tardio finalmente faz o seu efeito e leva os portugueses mais persistentes à sonolência. Conseguem adormecer numas “siestas” que compensam as noites problemáticas. Mas Setembro está à porta e com ele mais uma movimentação nos terrenos políticos, as eleições locais. As eleições para o poder autárquico são uma mistura de clientelismo básico de século XIX, aparelhos partidários pós-25 de Abril, corrupção imobiliária e uma oportunidade geral de fazer uma sondagem de opinião sobre o poder central. Serão seguidas pela tentativa de aprovar mais um orçamento que deverá tantas hipóteses de passar quantas as câmaras que o PSD conseguir manter e do próximo relatório trimestral sobre a economia – já sem os resultados de Verão. Admito ignorância quanto ao que vai na cabeça dos nossos veraneantes. Não sei se continuam a pensar que isto se vai corrigir sozinho. Não entendo o porquê da indiferença dos mais afectados pelas reformas. Estão à espera de algum salvador? Nesse caso puxem uma cadeirinha porque pode demorar – o último devia ter aparecido pouco depois de 1580 e ainda estamos à espera.

wir kapitulation

wir kapitulation

O calor entorpece os sentidos mas a seguir ao Verão virá sempre o frio. Severo. Cruel. Realista. E aí não existirão deliciosos pedaços de tempo a meio da tarde onde as pessoas poderão diluir as suas consciências. Virão também novos Senhores do Norte. Emissários imperiais para nos impor um novo tributo sobre a dívida gerada por nós e acima de tudo por especulação financeira organizada – se existisse capacidade técnica e coragem política provavelmente chegaríamos à conclusão que estamos mais num cenário de guerra económica e de ocupação informal do que parceria. Não haverá simpatia como não houve até agora. Não haverá perdão. Não haverá alívio. Apenas um aumento da pressão até que os mestres dos publicanos estejam saciados com o saque e assegurados da incapacidade de resposta. O regime fragiliza-se internamente mas cimenta cada vez a sua credibilidade pela sua estreita ligação à nova Roma. O povo ignora por sua conta e risco o que sucede debaixo das suas barbas.

Consilio, quod respuitur, nullum subest auxilium

Realidades Democráticas IV

Como tenho vindo a afirmar o número crescente de excluídos em Portugal está completamente sozinho na sua “luta”. Os media são perfeitamente indiferentes quando não hostis (e quando vemos quem são os seus proprietários não é complicado perceber porquê), os políticos vivem noutra realidade económica e social (da esquerda à direita , de cima a baixo) e os seus concidadãos mais afortunados gostam do sentimento de superioridade que obtém do infortúnio alheio (um caso de “schadenfreude” colectiva?). No entanto a negação por parte dos mais afectados continua. É perfeitamente compreensível, ainda que não racional. É uma realidade dura de engolir. Aceitar que quase tudo o que tinham como certo sobre a sua sociedade e a própria natureza humana (responsabilidade, solidariedade e outras ficções mais ou menos simpáticas que tornam a sua vida mais suportável) estava errado. Encarar esta realidade de frente envolveria aceitar, em primeiro lugar, um erro colossal em termos individuais que a nossa cultura não permite – as pessoas são treinadas a negar responsabilidades e erros sem aprenderem nada – e que de qualquer forma é inaceitável para o ego da maior parte. Como tal recusam-se a aceitar que, além de terem sido usados pelos seus superiores sociais e económicos, quiseram enganar-se a eles mesmos.

Fábrica da grande empresa IG Farben perto de Auschwitz (1941). A esfera económica tem sem dúvida um grande historial de integridade.

Fábrica da grande empresa IG Farben perto de Auschwitz (1941). A esfera económica tem sem dúvida um grande historial de integridade.

Prova IV: Os “grandes” empresários portugueses (que não acidentalmente também controlam os meios de comunicação privados) não só estão a favor da destruição económica, social e política que tem caracterizado os últimos governos (em ritmo crescente nos últimos dois anos…) como acham que não se foi longe o suficiente. Alguns dos menos subtis deste grupo usam mesmo a ameaça aberta para com o país que governam em tudo menos nome: ou aceitam o que se passa e se submetem ao poder económico ou serão castigados. Uma visão quase-aristocrática da realidade portuguesa sem as qualidades que deveriam caracterizar qualquer elite merecedora da sua posição.

Moral da prova IV: Dada a apatia da modernidade é pouco provável que haja qualquer indignação digna desse nome contra qualquer grupo económico. Isso seria levar as coisas demasiado a sério. Os portugueses não estão em hábito de derrubar poderes estabelecidos – por muito frágeis que estes sejam. Vai contra a sua idolatria do status social. Preferem de longe que alguém faça o trabalho sujo por eles, exigindo apenas a sua comparência para confirmar um “fait acompli“, legitimando qualquer nova ordem que saia do caos. Claro que isto abre a porta para toda a espécie de regimes curiosos mais ou menos patrocinados por elites que temem pela manutenção da sua posição. Para não magoar quem afirma o carácter extraordinário do povo português podemos, a título de exemplo ilustrativo, referir o caso da Hungria que parece seguir a mesma linha de acção e instaura lentamente um regime autoritário com aprovação plena dos próprios oprimidos. Afinal não somos os únicos.

Portugal, a Europa e a Modernidade

Idealmente a ideia de uma cultura partilhada a nível europeu é apelativa a qualquer pessoa que tenha um mínimo de sentido de história. Como nações, povos, culturas e seres humanos interagimos há tanto tempo uns com os outros que não me ocorreria nada de mais natural que embarcar num projecto de alguma integração a nível continental, especialmente a partir da segunda metade do século XX. O problema, que só se começou a manifestar décadas mais tarde, sempre foi a questão da integração. Quem deveria fazer parte do clube e quem não faria sentido ser convidado. Mas o projecto europeu, como a maioria das ideias que parecem funcionar bem, foi esticado até ficar permanentemente deformado. De uma ideia igualitária fomos entrando numa Europa de níveis. De um projecto de cultura comum foram aceites povos que nem tinham começado a digerir a modernidade (incluindo Portugal) acabando por criar desfasamentos que até hoje permanecem por resolver. De uma cultura de cidadãos derivámos numa cultura legalista – devido em grande parte à dificuldade de educar cidadãos em grande escala mas também devido à falta de interesse que todos os países que se juntaram ao núcleo mostraram pelos esforços necessários para atingir fins verdadeiramente exaltados.

"Things fall apart; the centre cannot hold" - William Butler Yeats, The Second Coming, 1919.

“Things fall apart; the centre cannot hold” – William Butler Yeats, The Second Coming, 1919.

Será verdade que o sistema económico terá desempenhado um papel de exacerbamento de tensões mas, em última análise, não as criou. Está em voga ver as tendências da ideologia económica agressiva da Comissão Europeia como principio, meio e fim dos problemas que afligem a União. Mas nada podia estar mais longe da verdade. A guerra económica é uma realidade mas não teria efeito se não tivesse encontrado um solo fértil em desunião, ressentimentos e diferenças profundas de sensibilidades. Desunião que sempre esteve presente (basta pensar nas questões ligadas à emigração) e foi sentida cada vez mais desde a implementação do euro. Que criou oficialmente dois escalões de pertença e levou a um processo de inevitável acumulação de riqueza no centro e esvaziamento económico da periferia. Os ressentimentos não são menos graves que no passado nem se resumem a estereótipos irracionais de cada nacionalidade, são os interesses divergente das várias nações (reconhecidas ou não como tal) a serem forçadas num mesmo molde quer queiram ou não. Uma certa historiografia germanófila usa, e abusa, do exemplo da ocupação francesa e belga do Rhur, entre 1923 e 1924, para justificar parte do ódio nascente na Alemanha pós-guilhermina, e de certa forma criar um dos, muitos, escapes morais para evitar a culpa colectiva pelo que foi o terceiro reich e moralizar a sua recente ascensão. Curiosamente os mesmos “intelectuais” (chamemos-lhes antes detentores de cátedras universitárias, de “spots” como comentadores televisivos ou ambas as coisas) falham em traçar o mesmo elo de ligação quando se humilha um país que deu sangue pela sua independência como a Grécia (e que curiosamente resistiu à agressão alemã antes) ou se destrói o orgulho espanhol sem pensar. Não espero convencer ninguém da verdade destes factos, apesar de serem evidentes por observação, pois conheço a mentalidade portuguesa. À direita apenas aplaudirão a crítica à União enquanto pensarem que implica uma rejeição total da modernidade e da mentalidade cosmopolita. À esquerda apenas aplaudirão se acreditarem que se está a fazer uma crítica radical ao sistema económico sendo a imaginária fraternidade europeia sacrossanta. E ao centro nunca aplaudirão algo que mude de forma tão radical o “status quo”. É demasiado ameaçador ter que encarar as falhas europeias. É demasiado aterrador perceber o vazio total do projecto europeu tal como ele existe (que repito, é o único que este país teve em “democracia”). Algo teria que mudar e isso é pura e simplesmente inaceitável. Quase, senão mesmo, criminoso por expor o esqueleto do sistema à observação dos “comuns”.

"'O que fazer?', é o que se perguntam, em unanimidade, os poderosos e os subjugados, os revolucionários e os activistas sociais, entendendo sempre com essa questão o que os outros devem fazer; ninguém se pergunta quais são as suas próprias obrigações." - Lev Tolstoi

“‘O que fazer?’, é o que se perguntam, em unanimidade, os poderosos e os subjugados, os revolucionários e os activistas sociais, entendendo sempre com essa questão o que os outros devem fazer; ninguém se pergunta quais são as suas próprias obrigações.” – Lev Tolstoi

E assim entramos no problema mais profundo de Portugal em particular.  A questão da modernidade e a sua relação com o português médio. Não é tema novo, basta requisitar um livro sobre o renascimento europeu para perceber que o nosso atraso é congénito. E isso foi apenas o prelúdio para quinhentos anos de atrasos e falhanços (como honradíssimas excepções por parte de homens e mulheres que deram de si, por vezes literalmente, para fazer este povo evoluir). O iluminismo teve uma breve hipótese de começar a brilhar com Pombal mas foi sufocado pelo Portugal tradicional. Bafiento, conservador, ignorante e fanático, esse Portugal, encarnado na monarca louca que pôs fim à carreira do marquês, nunca quis entrar no mundo real, ou se quer admitir que as questões pudessem ser mais  complexas que aquilo que o seu entendimento, quase-medieval, atingia. Mouzinho da Silveira tentaria mais tarde fazer o país reentrar no seu século mas sem sucesso, a mudança necessária provou ser demasiado vasta e a sua personalidade demasiado franca acabando mais uma vez por ser afastado por um herdeiro não distante de Maria I, a louca. Avançando mais um pouco entramos no fenómeno ainda hoje pouco conveniente da aceitação do Estado Novo e do conforto que foi para um país atrasado que nunca se quis verdadeiramente revoltar contra o seu senhor – que até na demência conseguiu reter a coroa. Não tenhamos ilusões. É uma história de resistência constante da parte menos ilustrada, e rural (não é acidental a desproporcionalidade da representação do interior profundo durante o regime salazarista), da nossa nação ao mundo, mesmo quando lhe demonstram a barbárie do seu comportamento. Pensou-se que meia dúzia de anos de voto universal e algum bem-estar efémero traria realmente uma mudança profunda? As coisas correm mais profundamente que isso. A discussão económica, o verniz partidário e a pertença religiosa (católica ou maçónica, é indiferente) obscurecem tais coisas mas os sentimentos são os mesmos. A não-responsabilidade. A não-cidadania. Mais que tudo a nação sente-se oprimida por si própria. Incapaz de tomar decisões, como sempre, e igualmente incapaz de aceitar as consequências que outros tomem decisões por si. Como venho a repetir desde há algum tempo, o país é um gigantesco não-projecto sem solução credível.

A Failed State

Vai ser este o termo como o futuro vai classificar Portugal. Uma comunidade sem projectos próprios que se encontra demasiado fragmentada internamente para fazer frente às ameaças que o mundo do seu tempo apresenta. Com a morte do projecto Europeu não sobra nada a gerações de políticos e empresários (enfim os homens do poder que fizeram a sua escalada nas últimas décadas ou em última medida dependem do status quo para sobreviverem) para apresentarem ao país, tal como ele ainda existe. É verdade que o projecto sombra da Europa ainda paira no ar, a “GrossDeutschland” (grande Alemanha). Mas isso não oferece qualquer posicionamento que não seja uma submissão equivalente à destruição do país como entidade, do povo como cultura e a um posicionamento permanente na periferia desta nova criação política – com o que isso implica, nomeadamente, uma pobreza mantida artificialmente para ajudar as economias centrais. Três gerações de políticos (a mais velha ainda com raízes profundas no Estado Novo) deixaram o país nesta situação de anemia interna. Uma não-entidade. Uma não-população (pode existir numericamente mas falta-lhe propósito e, como tal, o seu significado é nulo). Quase quatro décadas de caminho Europeu desembocaram no vazio. Na autodestruição colectiva da germanização forçada.

The Prussian Coat of Arms 1701

“Gott mit uns”

Não se tome isto como um incentivo à tomada da posição x ou y. Em termos reais a altura de agir passou. O nosso sistema está demasiado contaminado e incapacitado para ser capaz de regeneração interna. Pelo que apenas sobra observar o desenrolar do processo. O nosso futuro está nas mãos do Destino. Se a Europa sobreviver como projecto germânico morremos como Portugal. Simples. Não há espaço para outros projectos, culturas, interesses ou outras formas de viver na actual potência europeia dominante. Se a Europa falhar será desencadeada a maior (não apenas económica) crise mundial da história levando as nações mais frágeis do velho continente para águas que simultaneamente já navegaram mas que não estão prontas para encarar de novo. O mar da realpolitik. De qualquer forma o que conhecemos como realidade existe apenas como passado e ilusão, nunca como futuro. Vejo-me bloqueado no pensamento devido à enormidade do podemos estar prestes a ter que fazer já que mesmo no cenário de frustração da terceira onda de agressão germânica ficaremos à mercê da maior crise energética de todos os tempos, de um défice populacional, de um défice de técnicos, de um défice de pensadores, de um défice de líderes, de um défice de artistas, com feridas históricas não saradas e uma modernidade ainda mal apreendida. Não estamos apenas pobres contabilisticamente. Em todos os factores de “nation building” estamos paupérrimos. E no entanto esta parece ser a alternativa menos agressiva.

Thomas Cole - Destruction - 1836

“Where error is irreparable, repentance is useless.” – Edward Gibbon

Do alto do Enclave a vista é confusa. Muito movimento. Muito fumo. Muito caos anunciado. Poucas certezas que não aquelas mais imediatas. Estará na altura de reforçar as paliçadas. Os bárbaros não estão ainda às portas mas os ex-civilizados são uma horda igualmente assustadora e potencialmente destruidora.

Realidades Democráticas II

Como já mencionei antes a questão da democracia como sistema dominante no Ocidente já viu melhores dias – se quisermos ser particularmente brutais na análise podemos, sem incorrer em exageros, dizer que já nem existe na maior parte dos casos, foi substituída por algo híbrido e menos interligado com o poder popular ou a vontade individual. O desfasamento entre o debate dito político, ou seja, público e que envolve pessoas que nominalmente representam partidos políticos, e a opinião pública é cada vez mais evidente. Quando a segunda é mais “vanguardista” que a primeira é sinal certo que caímos num parlamentarismo que é essencialmente fachada.

"...it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing."

“…it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing.”

Prova II – o principal partido da oposição só agora se lembrou que certas medidas são tão violadoras do pacto entre as elites e os governados que, em qualquer sistema minimamente justo, exigem que se consulte as massas sobre a sua aplicação. Não apenas a mera questão constitucional que está em voga ultimamente. Muito antes disso foi ultrapassado o nível onde a governação excedeu o seu mandato (e não apenas neste governo – apesar de necessariamente conceder que os actuais pura e simplesmente perderam qualquer noção de responsabilidade perante a população ou sequer do seu papel e dos limites que deveriam ter).

Moral da Prova II: Como sempre todo o sistema económico e político conta com a normal passividade popular para garantir que depois do estrago feito qualquer mudança que seja feita tenha o menor impacto possível. Para isso tal “mudança” deve revestir-se das formas mais tradicionais possíveis e afastar ao máximo o poder real das mãos de cada cidadão. Daí que há décadas se tente passar a ideia de que a democracia se resume a um voto periódico. Iliba as pessoas de responsabilidades que, na maior dos casos, não querem e garante que a “mudança” será para manter o rumo. Nova gerência mas com os mesmos donos.

O fascínio com os bodes expiatórios

Se há algo que caracteriza os grupos humanos (sociedades, nações, agremiações, clubes de leitura, etc) é a desresponsabilização pessoal. O facto da complexidade social ter aumentado vertiginosamente nos últimos séculos tornou todo o fenómeno mais óbvio e deixou-nos ainda menos prontos a assumir responsabilidades que no fundo achamos que dividimos com mais pessoas. Mas mesmo isso é insatisfatório, já que levado às suas últimas consequências quereria dizer que possuímos de facto responsabilidades (por muito diluídas que sejam em processos de decisão comum ou autoritários) pelas situações que nos rodeiam, pelo que nos ocorre, pelo que acontece aos outros. Isto gera um problema para a mentalidade portuguesa, que é incapaz de assumir os erros cometidos na proporção devida. Vivemos de extremos. Tal como a percepção feminina ainda alterna, na mentalidade popular, entre a virgem e a prostituta também a do cidadão comum tende a alternar entre a do “santo vivo” e o “diabo em pessoa”. Uma democracia não consegue prosperar num pântano mental destes. É impossível. Torna-se extremamente árduo enfrentar os problemas quando não se é capaz de apontar a sua fonte real ou o que é preciso mudar, mesmo que seja dentro de nós, para os corrigir.

Anjos e Demónios?

Anjos e Demónios?

Daí o nosso fascínio nacional com a figura do bode expiatório. Alguém que, independentemente de ser um santo ou um demónio, é forçado a aceitar responsabilidades maiores do que aquelas que lhe cabem realmente. Sim o político é corrupto, nepotista ou incompetente (entre outras coisas) mas quando a população não penaliza eleitoralmente tais comportamentos onde fica a admissão de fraca ética pública por parte da cidadania? O sistema judicial pode não funcionar e estar viciado mas, mais uma vez, onde está a sociedade civil a indignar-se e a agir de forma a penalizar os agentes que a controlam? A necessidade desse alguém que seja transformado num “devorador de pecados” tem um fundo de narcisismo profundo porque rejeita a responsabilidade pessoal e colectiva dos cidadãos naquilo que lhes ocorre. É uma afirmação de que o corpo social é “puro” e que se o purgarmos de alguns elementos maus tudo voltará ao normal. É gritar aos quatro ventos a nossa inocência pessoal. Podemos não ter prestado atenção durante quarenta anos ao que se passava na economia. Mas somos inocentes. Podemos ter continuado a votar sem o mínimo de exigências éticas. Mas somos inocentes. Podemos ter abandonado os nossos concidadãos à sua sorte quando os vimos serem devorados por um sistema económico e social perverso. Mas somos inocentes.

"Purificando" o corpo social.

“Purificando” o corpo social.

O egocentrismo de tal posição torna-se ainda mais gritante quando o pânico se junta à mistura. Quando o inevitável peso de tanta “inocência” começa a afundar uma sociedade complexa começam os pedidos de “justiça” histéricos. Mas não é justiça que verdadeiramente querem. A punição de quem falhou, de quem violou a lei, de quem teve uma ética pública duvidosa é secundária e completamente insuficiente para cumprir o verdadeiro objectivo das “massas inocentes”. O que realmente procuram é a absolvição. A afirmação social que todos os males emanaram daqueles condenados e que todos os outros estão livres de qualquer mácula. A conclusão deste triste ciclo (repetido tantas, tantas, tantas vezes) é a perda do conceito de justiça. Seja ela inflexível ou tolerante tal ideia não tem lugar neste universo mental. E talvez seja essa a verdadeira tragédia. Que a única coisa requerida para apaziguar as consciências seja o sangue de meia dúzia de “pecadores”, caídos dos seus pedestais – aqueles cuja posição permanece intacta continuarão a ser adorados como deuses vivos. Que na pressa, no calor do momento, de se criarem as “listas de proscritos” para afixar no fórum se falhe mesmo em punir toda a culpa, em admitir todas as falhas. Os casos mais gritantes serão talvez eliminados mas as raízes que os permitiram jamais serão arrancadas. Serão as sementes da próxima geração de perversidades que permanecerão intactas enquanto a nossa obsessão for apenas queimar bodes expiatórios na praça pública.

“Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazer”César Marco Aurélio Antonino Augusto.