Contemplação como realidade

Na nossa sociedade moderna há uma notável aversão á introspecção pessoal. Vivemos de tal forma absorvidos pela nossa realidade social que nos esquecemos que em última análise somos mais do que a soma das nossas interacções com outras pessoas ou com objectos. Esta habituação social induz muitas vezes o erro de atribuir a causalidade das nossas acções a terceiros, em particular pessoas colectivas (estados, empresas, igrejas, clubes, etc). E claro que ninguém poderá, em boa fé, negar o extraordinário poder que estas pessoas colectivas exercem nas nossas realidades mas é preciso lembrarmo-nos que existe um campo de acção e contemplação que é apenas e só nosso, individual e não partilhável. Ou seja existe um espaço nas nossas vidas que apenas nós podemos preencher e perguntas a que apenas nós podemos responder. Depois de admitirmos que temos uma esfera que é apenas nossa torna-se necessário enterrar, de uma vez por todas, o mito que esse espaço e essas perguntas são apenas curiosidades intelectuais para quem tem tempo ou recursos. Antes pelo contrário são esses dois elementos, e a forma como lidamos com eles, que produzem quem somos realmente, geram o nosso verdadeiro “eu”.´

"Each of us assumes everyone else knows what HE is doing. They all assume we know what WE are doing. We don't...Nothing is going on and nobody knows what it is. Nobody is concealing anything except the fact that he does not understand anything anymore and wishes he could go home." - Philip K. Dick

“Each of us assumes everyone else knows what HE is doing. They all assume we know what WE are doing. We don’t…Nothing is going on and nobody knows what it is. Nobody is concealing anything except the fact that he does not understand anything anymore and wishes he could go home.” – Philip K. Dick

A hostilidade declarada que muitos têm ao conceito de interioridade, perpetuada durante anos ou décadas, leva a uma mentalidade de irresponsabilidade e inconsequência já que quem acredita que nada do que acontece depende das suas acções ou escolhas tem poucos incentivos a assumir compromissos – muitos chegam ao extremo de negar que possuam qualquer tipo de escolha, descrevendo a sua realidade como apenas experienciando o que outros criam. Torna-se assim clara a “genealogia” da ideia de impotência e da projecção dos nossos sonhos e esperanças em terceiros. Começamos a entender porque é que necessariamente a esfera política é incapaz de satisfazer as ambições de tantos cidadãos. A política, tal como a praticamos actualmente, assenta sobre a negação do individuo, da sua abdicação de poder pessoal e a sua transmissão a uma entidade mais ou menos abstracta (partido político, facção, ideologia, etc) a troco de uma promessa de realizar aquilo que cada um de nós espera. Será este mecanismo inerentemente perverso? Não necessariamente. Numa democracia representativa saudável este processo serve um propósito honesto e honrado, atingir compromissos em questões abrangentes que nenhum individuo pode esperar resolver sozinho. Ou seja, num sistema representativo saudável estamos perante uma transmissão de poder revogável, pontual e limitada. O problema surge quando a transmissão de poder se torna absoluta quer em termos de tempo ou âmbito. O caminho de todos os abusos começa com a asserção de intemporalidade do poder transmitido ou com a criação de um âmbito “total” que, por teoricamente representar o poder transmitido de todos os cidadãos, não conhece limites.

O Homem sem vida interiorSe isto é verdade qual o porquê da insistência dos cidadãos na exclusividade de soluções colectivas irreflectidas? Em boa parte porque há um grau de absolvição moral que pode ser encontrado num sistema anónimo e que não responde bem às aspirações dos indivíduos. Se as coisas correrem mal a culpa não será minha enquanto individuo porque eu não consigo influenciar o funcionamento de organizações complexas muito além do meu nível de poder. Isso de alguma forma liberta o individuo, que passa a abandonar todas as suas responsabilidade enquanto ser humano porque teoricamente cumpriu o seu dever cívico. Deixa de ser necessário comtemplar o nosso interior e analisar a nossa posição e podemos começar a encarar o “outro” com um mero objecto com o qual interagimos – algo que nega a dignidade quer do objectificador quer do objectificado. Ao descarregar as nossas dúvidas, preocupações e obrigações num sistema que sabemos que não pode responder às nossas necessidades estamos a dar-nos licença para nos abstrairmos da realidade, para nos abstrairmos de nós próprios. É nesta altura, em que abandonámos o nosso “eu” real, que todas as nossas actividades se transformam em escapes pouco saudáveis. A procura bem-estar material degenera numa fome que não pode nunca ser satisfeita, o prazer transforma-se em algo que não é apreciado mas procurado de forma compulsiva, a crítica transforma-se num processo meramente destrutivo (um fim em si mesmo e não uma ferramenta) e o apoio aos outros algo meramente pontual para satisfazer uma consciência profundamente culpada. E tudo isto porque negámos a nossa interioridade. Porque nos recusámos a parar e desligar um pouco do mundo para reflectir e comtemplar as perguntas base de qualquer corrente filosófica digna desse nome: o que somos, onde estamos, quem somos e o que devemos fazer.

“... it’s just business, it’s politics, it’s the way of the world, it’s a tough life and that it’s nothing personal. Well, fuck them. Make it personal." - Richard K. Morgan

“… it’s just business, it’s politics, it’s the way of the world, it’s a tough life and that it’s nothing personal.
Well, fuck them.
Make it personal.” – Richard K. Morgan

É preciso voltar a abraçar a ideia que aquilo que somos não é reflectido apenas pelas nossas lealdades sociais (e como tal exteriores a nós próprios). Somos essencialmente definidos pelas respostas que damos a questões muito básicas e pelas acções que essas respostas geram. E não falamos aqui de respostas no molde político tradicional. Não se trata de nos diluirmos a nós próprios dentro do grupo A ou B mas sim das acções e escolhas que estão dentro do nosso campo de acção individual, aquele que é apenas nosso, que reflecte a nossa dignidade e que ninguém nos pode tirar. É aí que jaz a nossa essência e tal essência só pode ser perdida ou abandonada de forma voluntária. É isso que fazemos quando nos recusamos a contemplar e a agir, negamo-nos a nós mesmos.

Eventos Fundadores

A tradição dos feriados nacionais (ou dias nacionais) remonta a tempos anteriores à escrita e visou sempre marcar os eventos fundadores da uma cidade ou estado. Nos últimos séculos a interpretação dada aos eventos tem transferido a sua natureza sacra para efemérides seculares mas sem grande alteração na sua razão de ser, trata-se sempre de um momento de identificação colectiva, com o todo do corpo político. Numa época de um individualismo mais vincado talvez não seja de estranhar que o significado dos eventos seja perdido e que a identificação popular seja afectada senão mesmo anulada. Em tempos idos uma Pólis celebraria o seu evento de fundação de forma totalmente colectiva, procissões presididas pelas estátuas dos deuses protectores seguiriam pela cidade, os cidadãos seriam reunidos nos maior espaço aberto disponível e seriam recitados os textos mais sagrados e o público viveria o drama divino que lhes permitiu existir. O triunfo da ordem sobre o caos seria afirmado e a renovação obrigatória teria tido lugar permitindo entrar num novo ciclo temporal, um reiniciar da criação se quisermos. Actualmente temos que nos contentar com bastante menos. Não só o individualismo corroeu bastante a possibilidade de nos identificarmos uns com os outros e com o sistema da nossa cidade/região/país como a própria ordem política e social sofreu danos graves à sua credibilidade. Morreu o desejo da renovação e da recriação para passar a existir um impulso de indiferença e mais tarde destruidor. A gravidade deste fenómeno não é reconhecida porque em termos de ciência política e económica tradicionais estas questões aparecem como algo simbólico que não afecta o substrato de realidade. Não podiam estar mais errados quanto ao papel e poder dos símbolos e a sua absoluta necessidade para qualquer grupo que não se quiser fragmentar. Mas faz parte da composição genética das elites modernas a arrogância e o orgulho desproporcional (e irrealista) no seu próprio “conhecimento”.

Eu encontrei um viajante de uma terra antiga Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso Erguem-se no deserto. Perto delas na areia, Meio afundada, jaz um rosto partido, cuja expressão E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida, A mão que os zombava e o coração que os alimentava. E no pedestal estas palavras aparecem: "Meu nome é Ozymandias, rei dos reis: Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!" Nada resta: junto à decadência Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.

Eu encontrei um viajante de uma terra antiga
Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso
Erguem-se no deserto. Perto delas na areia,
Meio afundada, jaz um rosto partido, cuja expressão
E lábios franzidos e escárnio de frieza no comando
Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas partes sem vida,
A mão que os zombava e o coração que os alimentava.
E no pedestal estas palavras aparecem:
“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!”
Nada resta: junto à decadência
Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas
As areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.

Os nossos amos e senhores pensam, de forma simplista, que as pessoas se mantêm presas a determinadas instituições e realidades por puro hábito e que qualquer alternativa nunca teria peso ou relevância suficiente para abalar o status quo. Não se quer admitir que esses laços formaram em algum momento histórico uma ligação emocional eficaz, ou seja, reflectiam uma realidade e que a sua manutenção depende da continuação da sua eficácia que por sua vez depende da sua renovação periódica. Pensam que se pode fragmentar o real (aquilo que é criado no momento fundador) em mil pedaços sem que as pessoas percam o seu norte, sem que reajam de forma apropriada ao caos que ameaça infiltrar toda a sua existência. Nas suas ilhas de estabilidade social e económica as elites chegam mesmo a acreditar que esta divisão fortalece o seu poder ao tornar os cidadãos mais indefesos e isolados mas esquecem-se de um facto muito simples: o caos não descrimina, infiltra-se lentamente, destrói todas as bases e cria possibilidades e situações que nunca fizeram parte das intenções originais. As elites vivem na ilusão que conseguem domar o dragão do caos, um acto de suprema arrogância e vaidade.

"A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda"

“A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda”

Sem a repetição da criação a ordem decai, lenta mas seguramente. Não há nada que possa ser feito a esse respeito. Não há soluções tecnocráticas que possam substituir o símbolo e aquilo que está subjacente a ele. Sem uma reposição do ciclo de ordem não há recuperação da confiança implícita que forma a base de todo e qualquer grupo. Sem a compreensão da efectividade dos laços interpessoais não há necessidade que consiga suprir permanentemente as correntes de desunião que empurram as pessoas, cada vez mais, para abismos existenciais. Se não olharmos para o estado deplorável das nossas celebrações de fundação como um sério aviso para a degradação que espreita no horizonte estaremos a viver uma ilusão. Sem fundamento a Pólis afunda.

(Mini) Manifestos tecnocráticos

Se há algo de que podemos todos estar seguros é que os meios de comunicação são inteiramente neutros em Portugal. Não são dados a preferências ocultas ou a servir agendas ideológicas de forma encapotada. A verdade e apenas a verdade. Não será então de estranhar que nos tenham presenteado com esta publicidade ao mais recente manifesto dos tecnocratas do sistema político-económico. Num pequeno vídeo explicam-nos tudo sobre as complexas realidades portuguesas, de forma simples, para não cansarmos os nossos cérebros.

"Pensar é o diálogo da alma consigo mesma" - Platão

“Pensar é o diálogo da alma consigo mesma” – Platão

Há muitos anos que o sector conservador investe imenso tempo e dinheiro em produzir obras, mais ou menos panfletárias, de divulgação das suas doutrinas – quais missionários que querem dilatar a fé e o império. São construídas especificamente para um público de classe média que que acha que deve ter opinião sobre determinados temas mas não está disposto a investir o tempo e esforço necessários para realmente entrar nas questões – todos somos demasiado ocupados hoje em dia e se as empresas podem fazer outsourcing de servidos porque não fariam as pessoas o outsourcing das suas ideias? O resultado é a propagação quase inevitável de uma visão enviesada da realidade, que leva a absurdos lógicos quando seguida até às suas consequências finais, estragos sociais provavelmente irreparáveis totalmente previsíveis e à solidificação de uma mentalidade de respostas e análises simplistas que evitem todas as coisas feias, como o confronto com a realidade empírica.

“The real political task in a society such as ours is to criticize the workings of institutions that appear to be both neutral and independent, to criticize and attack them in such a manner that the political violence that has always exercised itself obscurely through them will be unmasked, so that one can fight against them.”  - Michel Foucault

“The real political task in a society such as ours is to criticize the workings of institutions that appear to be both neutral and independent, to criticize and attack them in such a manner that the political violence that has always exercised itself obscurely through them will be unmasked, so that one can fight against them.” – Michel Foucault

Não acredita no que digo caro leitor? Olhemos então para o conteúdo do fantástico vídeo promocional que nos foi proporcionado (será de notar que a página do jornal contém a penas um vídeo com discursos dos autores, não há sequer a tentativa de fingir que se trata de uma análise jornalística ou minimamente crítica), ponto por ponto.

– Porque é que os economistas acham que têm sempre uma resposta para tudo? Ao contrário do que é afirmado pelos autores não é que haja uma procura popular de respostas junto dos economistas. A questão é que o culto ao deus mercado que tem sido imposto por todo o mundo tem por corolário a criação de uma casta “sacerdotal” de “iluminados”, que através de teorias e livros sagrados interpreta a vontade desta tenebrosa divindade. Foram os próprios economistas que se colocaram neste papel oracular e do qual não abdicam nem que tenham que reduzir toda a existência humana à mera troca de bens, serviços e promessas de pagamento. Como tal, regularmente saem dos seus transes e dizem-nos os sacrifícios que devemos todos fazer para apaziguar o seu deus. A economia, como é praticada hoje em dia, está um degrau abaixo da adivinhação através das entranhas de animais.

– Porque não há dinheiro para pagar as nossas reformas? De forma fantasiosa os nossos “rebeldes” (bem institucionais) querem-nos fazer crer que a segurança social é uma espécie de fraude que nunca fez sentido e que nunca será sustentável. Isto é a melhor tradição da escola de Chicago, uma série de premissas mal explicadas, ligadas por um raciocínio dúbio que levam a uma conclusão incrível, que implicitamente quer levar quem os ouvir e ler a pensar que no fundo todo o sistema devia ser privatizado (a subtileza é o leitor chegar a essa conclusão “sozinho”). Claro que nunca entra nos esquemas mentais dos altos sacerdotes do deus mercado que a segurança social nunca foi suposto ser lucrativa ou sequer ser um negócio. Sempre foi suposto ser um encargo que era assumido pelo estado em nome de uma estabilidade social acrescida. Que no fundo se trata de uma questão que sempre foi e deverá permanecer política. É igualmente omitido que em caso de privatização as empresas detentoras dos planos de pensões passam a poder restrutura-los a qualquer altura e que quando forem à falência todos os pagamentos cessam. Não se diz que este cenário, algo negro, já aconteceu em mais que um país que privatizou a sua segurança social. Não se fala nos milhões que ficaram sem pensão estatal e sem pensão privada, literalmente a trabalharem até poderem e até morrerem.

– Porque é que há tantos prédios em ruinas no centro de Lisboa e Porto? Aqui o vilão na história dos nossos rebeldes é o congelamento dos arrendamentos que passa a ser culpado pela decadência urbanística. Que a esmagadora rendas já não reflictam essa distorção, que as pessoas ainda afectadas essencialmente não têm como sustentar qualquer tipo de “preço de mercado” não entra na equação. Os novos sem abrigos não membros produtivos da sociedade e como tal não merecem uma só palavra. São remetidos ao mesmo silêncio dos pensionistas em regime privado que ficaram sem nada. Numa nota particularmente perversa o exemplo de fundos que detêm propriedades é obviamente público, esquecendo claro que os fundos bancários em muito ultrapassam a posse estatal.

– Porque é que há tantos professores e as turmas têm alunos a mais? Aqui foge, um pouco, a boca para a verdade aos nossos nobres curas conservadores. De facto há muitos professores em situação irregular que não têm horários dignos desse nome. De facto há professores em funções de administração que deveriam ser desempenhados por burocratas. Mas falta dizer que tudo isso foi consequência das reformas para “racionalizar o sistema de ensino”. Que o interesse servido em tais reformas não foi, como é dito, o dos professores mas o sim o de privados que ganham com a desvalorização do serviço público. Mas enfim, isso afecta apenas quem colocar os filhos no público portanto também vai para o mesmo tumulo silencioso que os pensionistas depauperados e sem abrigo.

Como vê caro leitor em pouco mais de cinco minutos de vídeo foi possível simplificar e distorcer situações relativamente simples ao ponto de alterar radicalmente a perspectiva de qualquer cidadão menos dado à reflexão por conta própria. Ainda está seguro que está a obter uma análise séria e realista por parte de comentadores institucionais e/ou “rebeldes”?

Pequenas perguntas

Ao longo do tempo há pequenas perguntas que começam a “incomodar” ou a ficar presas, qual pedra no sapato, na nossa mente e às quais não conseguimos dar um enquadramento lógico que nos satisfaça plenamente. Começamos a pensar sobre o tema e ao fim de alguma leitura, debate e pensamento sobre o tema começamos a ouvir uma voz interna a dizer: “porque estás a fazer isto tudo”? Quanto maior a base de conhecimento menor será o grau de integração social (não interessa tanto o nível económico – apesar de ajudar ou facilitar claro – como o sentimento interno da pessoa, se ela se sente parte do todo, se consegue uma identificação emocional com “a coisa”) e mais vezes este tipo de pergunta interna irá surgir.

“Any fool can know. The point is to understand.”

“Any fool can know. The point is to understand.”

Para mim há uma lista delas que ao longo dos anos fazem as suas rondas habituais na minha mente sem que nunca tenha conseguido obter uma resposta que me diga algo (a um nível existencial se quisermos colocar a coisa assim). E a primeira delas é o acto de votar. Eu compreendo, e sei melhor que muitos, a história do liberalismo português (no seu sentido europeu e único: autonomização do individuo face aos grupos sociais, seja a coroa, o patrão, a religião a cidade, o bairro, o clã, etc) mas depois de uma breve admiração pelos esforços que outros desenvolveram em seu (e inconscientemente) e em meu nome fica o vazio. Porque haveria de votar? Porque haveria sequer de me preocupar com as tricas internas que passam por “notícias” nos órgãos de informação comerciais e politizados? O que significa para mim que um ou outro governe (tirando casos aberrantes de ameaça de liberdades fundamentais, mas nesse caso penso que poderíamos considerar mais como situações de autodefesa eleitoral do que como um voto ponderado)? Eu não como da mão de nenhum deles por isso à partida nada ganho em qualquer apoio. Não acredito por um momento na sinceridade de nenhum deles por isso sei que são todos igualmente ocos. Já vivi o suficiente para a ver a corrupção de todos eles triunfar sobre pessoas boas ou ingénuas que nada fizeram para o merecer, por isso, porque haveria de ajudar a dar esse tipo de poder a qualquer um deles?

"Greed is a bottomless pit which exhausts the person in an endless effort to satisfy the need without ever reaching satisfaction"

“Greed is a bottomless pit which exhausts the person in an endless effort to satisfy the need without ever reaching satisfaction”

Uma das minhas grandes desilusões é não ser anarquista. Isso facilitaria imenso as coisas. Passar um selo de borracha sobre toda a teoria institucional e mandar tudo às urtigas. Mas, mais uma vez, tenho experiência pessoal suficiente para saber que o anarquismo é uma fuga do inevitável. Da natureza humana. Que anseia por hierarquia (menos pesada e menos visível é o que tem estado na moda nas últimas décadas mas, como na roupa, estas coisas são cíclicas) e por ganho pessoal. Mais que isso, apesar do misantropismo sei reconhecer que há indivíduos, aqui e ali extremamente isolados, cortados de outra cepa. Para quem uma oportunidade numa posição de organização seria uma dádiva dos deuses a todos nós – apesar simultaneamente ser obrigado a reconhecer a improbabilidade que tais indivíduos vão muito longe nas hierarquias partidárias e corporativas. Há demasiados acordos a fazer, demasiadas coisas a comprometer, demasiado que fica pelo caminho. Até que, para aquelas que decidem entrar no jogo para “mudar as coisas por dentro”, sobra apenas mais um esqueleto ético, igual aos outros que enchem os partidos, os órgãos do estado, as chefias e cargos médios das empresas. Autênticos abismos niilistas andantes. Talvez os gregos tivessem alguma razão (limitada pelo seu próprio isolamento) quando falavam de gerações decrescentes. À era o do ouro seguir-se-á a de prata e depois a de bronze (continuando a sequência até a uma degradação final e, talvez, renovação) e talvez assim entendamos porque muitos dos dignatários serão incapazes de cumprir as funções, básicas, que os seus antecessores lhes encarregaram.

"E a última é a do duro ferro. De súbito, todo o acto nefando irrompe nesta idade de metal menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a  lealdade, e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro e a traição, e as insídas e a violência,e a criminosa paixão por possuir."

“E a última é a do duro ferro. De súbito, todo o acto nefando irrompe nesta idade de metal menos valioso. Fugiram o pudor, a sinceridade, a lealdade, e, no lugar destes, sucederam-se-lhes o logro e a traição, e as insídas e a violência,e a criminosa paixão por possuir.”

Portanto fica a questão, para quem ainda se interessar não pelas pessoas, não pelos eventos mas pelas ideias: Porquê, dado tudo isto votar? Que bem ético atingimos? Que serviço cumprimos? Qual o objectivo pragmático que é servido?

A Failed State

Vai ser este o termo como o futuro vai classificar Portugal. Uma comunidade sem projectos próprios que se encontra demasiado fragmentada internamente para fazer frente às ameaças que o mundo do seu tempo apresenta. Com a morte do projecto Europeu não sobra nada a gerações de políticos e empresários (enfim os homens do poder que fizeram a sua escalada nas últimas décadas ou em última medida dependem do status quo para sobreviverem) para apresentarem ao país, tal como ele ainda existe. É verdade que o projecto sombra da Europa ainda paira no ar, a “GrossDeutschland” (grande Alemanha). Mas isso não oferece qualquer posicionamento que não seja uma submissão equivalente à destruição do país como entidade, do povo como cultura e a um posicionamento permanente na periferia desta nova criação política – com o que isso implica, nomeadamente, uma pobreza mantida artificialmente para ajudar as economias centrais. Três gerações de políticos (a mais velha ainda com raízes profundas no Estado Novo) deixaram o país nesta situação de anemia interna. Uma não-entidade. Uma não-população (pode existir numericamente mas falta-lhe propósito e, como tal, o seu significado é nulo). Quase quatro décadas de caminho Europeu desembocaram no vazio. Na autodestruição colectiva da germanização forçada.

The Prussian Coat of Arms 1701

“Gott mit uns”

Não se tome isto como um incentivo à tomada da posição x ou y. Em termos reais a altura de agir passou. O nosso sistema está demasiado contaminado e incapacitado para ser capaz de regeneração interna. Pelo que apenas sobra observar o desenrolar do processo. O nosso futuro está nas mãos do Destino. Se a Europa sobreviver como projecto germânico morremos como Portugal. Simples. Não há espaço para outros projectos, culturas, interesses ou outras formas de viver na actual potência europeia dominante. Se a Europa falhar será desencadeada a maior (não apenas económica) crise mundial da história levando as nações mais frágeis do velho continente para águas que simultaneamente já navegaram mas que não estão prontas para encarar de novo. O mar da realpolitik. De qualquer forma o que conhecemos como realidade existe apenas como passado e ilusão, nunca como futuro. Vejo-me bloqueado no pensamento devido à enormidade do podemos estar prestes a ter que fazer já que mesmo no cenário de frustração da terceira onda de agressão germânica ficaremos à mercê da maior crise energética de todos os tempos, de um défice populacional, de um défice de técnicos, de um défice de pensadores, de um défice de líderes, de um défice de artistas, com feridas históricas não saradas e uma modernidade ainda mal apreendida. Não estamos apenas pobres contabilisticamente. Em todos os factores de “nation building” estamos paupérrimos. E no entanto esta parece ser a alternativa menos agressiva.

Thomas Cole - Destruction - 1836

“Where error is irreparable, repentance is useless.” – Edward Gibbon

Do alto do Enclave a vista é confusa. Muito movimento. Muito fumo. Muito caos anunciado. Poucas certezas que não aquelas mais imediatas. Estará na altura de reforçar as paliçadas. Os bárbaros não estão ainda às portas mas os ex-civilizados são uma horda igualmente assustadora e potencialmente destruidora.

O fascínio com os bodes expiatórios

Se há algo que caracteriza os grupos humanos (sociedades, nações, agremiações, clubes de leitura, etc) é a desresponsabilização pessoal. O facto da complexidade social ter aumentado vertiginosamente nos últimos séculos tornou todo o fenómeno mais óbvio e deixou-nos ainda menos prontos a assumir responsabilidades que no fundo achamos que dividimos com mais pessoas. Mas mesmo isso é insatisfatório, já que levado às suas últimas consequências quereria dizer que possuímos de facto responsabilidades (por muito diluídas que sejam em processos de decisão comum ou autoritários) pelas situações que nos rodeiam, pelo que nos ocorre, pelo que acontece aos outros. Isto gera um problema para a mentalidade portuguesa, que é incapaz de assumir os erros cometidos na proporção devida. Vivemos de extremos. Tal como a percepção feminina ainda alterna, na mentalidade popular, entre a virgem e a prostituta também a do cidadão comum tende a alternar entre a do “santo vivo” e o “diabo em pessoa”. Uma democracia não consegue prosperar num pântano mental destes. É impossível. Torna-se extremamente árduo enfrentar os problemas quando não se é capaz de apontar a sua fonte real ou o que é preciso mudar, mesmo que seja dentro de nós, para os corrigir.

Anjos e Demónios?

Anjos e Demónios?

Daí o nosso fascínio nacional com a figura do bode expiatório. Alguém que, independentemente de ser um santo ou um demónio, é forçado a aceitar responsabilidades maiores do que aquelas que lhe cabem realmente. Sim o político é corrupto, nepotista ou incompetente (entre outras coisas) mas quando a população não penaliza eleitoralmente tais comportamentos onde fica a admissão de fraca ética pública por parte da cidadania? O sistema judicial pode não funcionar e estar viciado mas, mais uma vez, onde está a sociedade civil a indignar-se e a agir de forma a penalizar os agentes que a controlam? A necessidade desse alguém que seja transformado num “devorador de pecados” tem um fundo de narcisismo profundo porque rejeita a responsabilidade pessoal e colectiva dos cidadãos naquilo que lhes ocorre. É uma afirmação de que o corpo social é “puro” e que se o purgarmos de alguns elementos maus tudo voltará ao normal. É gritar aos quatro ventos a nossa inocência pessoal. Podemos não ter prestado atenção durante quarenta anos ao que se passava na economia. Mas somos inocentes. Podemos ter continuado a votar sem o mínimo de exigências éticas. Mas somos inocentes. Podemos ter abandonado os nossos concidadãos à sua sorte quando os vimos serem devorados por um sistema económico e social perverso. Mas somos inocentes.

"Purificando" o corpo social.

“Purificando” o corpo social.

O egocentrismo de tal posição torna-se ainda mais gritante quando o pânico se junta à mistura. Quando o inevitável peso de tanta “inocência” começa a afundar uma sociedade complexa começam os pedidos de “justiça” histéricos. Mas não é justiça que verdadeiramente querem. A punição de quem falhou, de quem violou a lei, de quem teve uma ética pública duvidosa é secundária e completamente insuficiente para cumprir o verdadeiro objectivo das “massas inocentes”. O que realmente procuram é a absolvição. A afirmação social que todos os males emanaram daqueles condenados e que todos os outros estão livres de qualquer mácula. A conclusão deste triste ciclo (repetido tantas, tantas, tantas vezes) é a perda do conceito de justiça. Seja ela inflexível ou tolerante tal ideia não tem lugar neste universo mental. E talvez seja essa a verdadeira tragédia. Que a única coisa requerida para apaziguar as consciências seja o sangue de meia dúzia de “pecadores”, caídos dos seus pedestais – aqueles cuja posição permanece intacta continuarão a ser adorados como deuses vivos. Que na pressa, no calor do momento, de se criarem as “listas de proscritos” para afixar no fórum se falhe mesmo em punir toda a culpa, em admitir todas as falhas. Os casos mais gritantes serão talvez eliminados mas as raízes que os permitiram jamais serão arrancadas. Serão as sementes da próxima geração de perversidades que permanecerão intactas enquanto a nossa obsessão for apenas queimar bodes expiatórios na praça pública.

“Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazer”César Marco Aurélio Antonino Augusto.