O programa eleitoral de todos: Regionalizar

Se há medida que as tribos da direita e da esquerda concordam é que a solução para os males do nosso país é regionalizar tudo que é organismo público. A desagregação do poder político traria de forma mágica ordem, paz e prosperidade a uma situação caótica. Já houve referendo sobre a matéria (não vinculativo) e a resposta dos eleitores foi “não”. Mesmo que apenas de forma instintiva e não sistemática os portugueses intuíram, correctamente, que havia algo de fundamentalmente errado com a fragilização do estado e dos seus, já escassos, poderes organizacionais. Pareceu-lhes estranho que o poder local fosse glorificado e recompensado quando é precisamente o ramo do poder democrático que menos sucesso teve desde a sua implementação. Sendo ainda mais brutais as duas situações de regionalização que tivemos, a municipalização e as regiões autónomas, representam os maiores fiascos democráticos desde o 25 de Abril. A municipalização não trouxe qualquer desenvolvimento ao país, não criou qualquer proximidade real ao cidadão, não impediu que a corrupção florescesse, não dinamizou o interior, em suma, não alterou uma vírgula às dinâmicas económicas e sociais que já estavam presentes em cada município. Serviu, e serve, apenas para criar cargos partidários intermédios e institucionalizar de forma democrática os caciques que governam as várias localidades desde pelo menos o século XIX. Quanto à regionalização a realidade quotidiana fala por si, as duas regiões autónomas são perpetuamente deficitárias, com elevadíssimos (até pelo standard português) níveis de disparidade de rendimentos sendo que a Madeira em particular conheceu um ligeiro boom devido às suas actividades como zona franca (sem que esse dinheiro que passou pelas ilhas tenha trazido qualquer beneficio ao cidadão médio da região).

"O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. " - José Ortega y Gasset

“O importante é a lembrança dos erros, que nos permite não cometer sempre os mesmos. ” – José Ortega y Gasset

É neste contexto que os movimentos políticos tribais voltam a insistir na regionalização como relíquia sagrada da recuperação nacional. Percebendo há muito que os portugueses, apesar de serem inconsequentes, não são totalmente cegos e que não apoiariam qualquer formalização de transferência de poder para as regiões (muito menos a criação de todo um serviço público regional cravejado de nomeados políticos) as tribos de esquerda e direita apostam agora numa transferência não oficial e gradual, no fundo querem fazer a coisa lentamente, pela calada, para no fim apresentar a regionalização como um dado adquirido que já não é possível alterar – levando a uma formalização política depois dos factos. Todo o regime concorda, porque todos os componentes do regime apreciam a criação de cargos partidários e gostariam de ter mão livre nos seus “feudos ancestrais”. A retórica usada para atingir este fim tem sido essencialmente a dos serviços de proximidade e da “responsabilização” do cidadão a nível local. Claro que isto é falacioso já que o poder não está a ser devolvido ao cidadão, está a ser entregue às máquinas partidárias locais. Mas além do ganho imediato há razões mais profundas para este consenso informal do regime quanto à necessidade de dissolver ao máximo o estado central:

– As estruturas municipais ou regionais (se forem criadas) têm muito menos capacidade de resistir a pressões de grandes empresas, ou seja, o que hoje é negociado pelo estado central pode passar a ser negociado por um presidente de junta que terá um espaço de manobra inexistente quando confrontado com o poder económico.

– As oportunidades de corrupção multiplicar-se-ão já que as decisões passarão a estar dependentes não de uma autoridade central que é visível e é responsabilizada mas sim de múltiplas autoridades locais fragilizadas e sem vontade de antagonizar seja quem for.

– As privatizações que o estado central ainda não teve coragem de fazer serão agora efectuadas informalmente por autoridades locais que alegarão que não têm nem recursos nem vontade de se encarregarem directamente das suas novas responsabilidades.

– Ao colocar-se numa posição de observador o Estado está de facto a encorajar a experimentação social na sua própria população já que esquemas que seriam considerados arriscados ou pouco éticos poderão dentro de um modelo regional ser testados numa escala mais pequena sem que a maior parte do país sequer se aperceba do que se está a passar.

– As críticas que ainda se podem ouvir às medidas políticas mais absurdas serão silenciadas num sistema regional já que localmente as redes de dependência são muito mais fortes e os castigos muito mais pesados e rápidos – não é por acaso que as pequenas localidades são exemplos perfeitos de unanimismo, não há espaço social para contestar.

– Ao anular grande parte dos poderes de um estado central a Bruxelas consegue submeter ainda mais Portugal já que para muitos projectos passará a lidar directamente com autoridades regionais. Podemos chegar a uma situação em que caso exista oposição a máquina burocrática da UE pode utilizar regiões autónomas umas contra as outras.

"O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele." - Pierre Choderlos de Laclos

“O nosso ridículo cresce na proporção em que nos dependemos dele.” – Pierre Choderlos de Laclos

Por tudo isto não podemos ter dúvidas que seja quem for que assuma o poder nos próximos tempos o programa de medidas a médio prazo será o mesmo: medidas de proximidade, ou seja, uma regionalização encapotada que visa aprofundar o grau de feudalização da sociedade portuguesa. Enquanto as tribos da esquerda e da direita entretêm o país com danças guerreiras coreografadas e competições poéticas sobre quem é mais puro nas suas intenções o grosso das suas intenções reais passa ao lado do cidadão médio. Embevecido com o entretenimento e anodinamente seguro nas suas lealdades sectárias não lhe ocorre começar a ligar os vários silêncios estratégicos para criar uma imagem mais clara do que realmente se vai passar – convém lembrar aos leitores mais distraídos que em Portugal o que não é dito é sempre mais importante e revelador do que aquilo que é dito. Seja quem for que ganhe o próximo concurso de popularidade a resposta será essencialmente a mesma: devolver Portugal ao estado de caciquismo puro e duro.

"As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material." - John Galbraith

“As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco da sua vantagem material.” – John Galbraith

O anseio de mudança que grande parte dos portugueses sente será explorado implacavelmente criando ilusões sobre o que será realmente feito e com que objectivos. Os que se consideram mais “informados” serão ironicamente os mais manipulados e enganados pois acreditam que a mudança de linguagem e o falso protesto vão surtir efeito sobre uma elite que é inamovível. Acreditam piamente que as suas puras intenções, expressas de uma forma moderada e inepta típica da classe média (apesar de muitos destes cidadãos já não estarem nos escalões de rendimento correspondentes a uma classe média), serão respeitadas uma vez acabado o show eleitoral, esquecendo-se que o substrato dos seus projectos “alternativos” é controlado por pessoas que estão perfeitamente integradas nas nossas elites nacionais e cujas pretensões ideológicas de “radicalidade” não passam de uma afectação estética. Quando os dados estiverem lançados acabarão por tomar as mesmas decisões que todos os outros que os precederam porque no fundo não ambicionam qualquer rotura com o regime. A miragem de uma retoma económica eminente combinada com um desejo profundo de uma resolução mágica que não envolva qualquer acção pessoal combinam-se para criar a próxima desilusão.